Nuno Almeida (Poeta)
Esp.MMA
Lisboa
Aquando da feitura deste livro, foi
solicitado, pela Enfª Rosa Serra, que quem com elas tivesse privado nas suas
andanças por África, dessem os seus testemunhos, para serem inseridos no livro.
Tal não foi concretizado, mas aqui deixo o meu testemunho que em tempo devido
enviei à Srª Enfª Rosa Serra:
Queridas companheiras de tempos de
dor mas também de alegrias, relato dois episódios que me marcaram muito e que
foram vividos com a presença de uma de vós.
A 1ª foi quando da minha primeira saída para uma evacuação.
Aterrámos, saltei com a maca na mão e de imediato me colocaram nela um homem
com o ventre todo aberto e a esvair-se em sangue. Colocado no heli a enfermeira
começa de imediato a procurar-lhe veias e a injectá-lo, tentando aliviar-lhe as
dores e mantê-lo vivo até ao Hospital. Eu via tudo aquilo desenrolar-se perante
os meus olhos incrédulos para tanto horror e estupefacção perante a calma,
aparentemente serena, com que ela acertava nas veias, apesar da vibração do
heli e das convulsões que o ferido exibia.
A determinado momento, o ferido com um rosto que nunca esquecerei, pálido,
olhos semicerrados e revirados para cima, aperta na mão uma medalha, que trazia
pendurada num fio ao pescoço, com uma foto esmaltada de uma mulher e uma
criança, e beija-a dizendo: “ adeus minhas queridas que nunca mais vos vejo”.
Impotente perante a situação curvo-me e toco-lhe no peito dizendo-lhe: “não
digas isso que estamos mesmo a chegar ao hospital”. Ele põe a medalha na boca,
morde-a e, com as duas mãos agarra-me no pulso, revira os olhos e tomba a
cabeça para o lado.
Os últimos minutos, até aterrar no hospital, foram feitos com aquelas mãos
fortemente cerradas no meu pulso, eu chorando compulsivamente, e a enfermeira
dando conta que todo o seu esforço e luta para roubar aquele homem das garras
da morte tinham sido em vão.
Apesar do desfecho infeliz, que certamente a não deixou dormir tranquila
naquela noite, tal como a mim, nos dias seguintes lá estava ela a lutar
novamente, com toda a sua determinação, para que uma vida fosse salva e fizesse
valer a pena todo o esforço e determinação empreendidos.
A 2ª foi numa operação com comandos
africanos em Teixeira Pinto.
Transportámos as tropas até uma área determinada no mato e regressámos ao
aquartelamento aguardando ordens para mais tarde, após o seu confronto com o
inimigo, recolher os elementos transportados.
Estávamos a meio da operação quando recebemos ordens para levantar voo e
evacuar um nosso elemento que estaria ferido.
Dirigimo-nos ao local e ao aterrar, quando me preparo para saltar com a maca,
vejo um comando africano, alto e esguio no seu camuflado, dirigir-se, pelo seu
próprio pé, ao heli, com a sua arma numa mão e um saco de pano na outra, e com
aspecto de estar em transe hipnótico.
Abro a porta do heli e desço para o terreno para lhe abrir a porta lateral
traseira, mas ele entra e senta-se no meu lugar, com um ar muito hipnótico e a
transpirar desalmadamente, e coloca o saco de pano, tipo daqueles de ir ao pão,
com atilho na boca do saco, entre a cadeira onde se sentou e a da enfermeira.
Eu, privado do meu assento, entro para a parte de trás e sento-me nos bancos
traseiros, frente à enfermeira.
Durante o voo, ela começa a fazer-me sinal que sente um cheiro forte vindo saco
e interroga-me, por gestos, se sei o que será. Faço-lhe sinal que não, e ela
olha para o comando que continua em estado de transe com o olhar muito
distante, mas sem qualquer ferimento aparente.
Passam-se uns minutos e novamente a enfermeira me faz sinal do mau cheiro que
vem do saco, e tenta com dois dedos alargar o atilho do saco, sem que o comando
se aperceba. Após insistir mais um pouco logra alargar suficientemente a boca
do saco e dissimuladamente curva a cabeça para espreitar o seu interior.
Subitamente ouço um grito abafado da parte dela e vejo o seu ar aterrorizado, o
que me faz olhar rapidamente para o saco.
A cena é macabra, dentro do saco está a cabeça do inimigo que o comando tinha
morto e que, devido à sua religião, a tinha degolado para que o espírito desse
homem não o perseguisse no futuro ( ouvi essa explicação já após o entregarmos
na enfermaria com febres altíssimas ).
Foi um susto que nos apanhou de surpresa e que não esqueci tão cedo. Para a
enfermeira não deve ter sido fácil deparar-se com aquela cena, ainda mais que
tinha os dedos a milímetros da cabeça decepada.
Espero que estes dois episódios sirvam para que melhor se compreenda o valor e
a coragem das mulheres que tanto fizeram para minimizar o sofrimento de quem na
guerra lutou.
Com a minha sincera e estimada consideração
Nuno Almeida “poeta”