Nuno Almeida Poeta)
Esp.MMA
Lisboa
Aquando
da feitura do livro sobre as enfermeiras paraquedistas, em 2012, escrevi este
testemunho, enviado à sra. enfermeira Rosa Serra, para que fosse incluído no
mesmo.
Por opção do editor, tal não foi concluído.
Aqui deixo este meu testemunho enaltecendo a bravura e coragem dessas mulheres.
Queridas companheiras de tempos
de dor mas também de alegrias, relato dois episódios que me marcaram muito e
que foram vividos com a presença de uma de vós.
A 1ª foi quando da minha primeira saída para uma evacuação.
Aterrámos, saltei com a maca na mão e de imediato me colocaram nela um homem
com o ventre todo aberto e a esvair-se em sangue. Colocado no heli a enfermeira
começa de imediato a procurar-lhe veias e a injectá-lo, tentando aliviar-lhe as
dores e mantê-lo vivo até ao Hospital. Eu via tudo aquilo desenrolar-se perante
os meus olhos incrédulos para tanto horror e estupefacção perante a calma,
aparentemente serena, com que ela acertava nas veias, apesar da vibração do
heli e das convulsões que o ferido exibia.
A determinado momento, o ferido com um rosto que nunca esquecerei, pálido,
olhos semicerrados e revirados para cima, aperta na mão uma medalha, que trazia
pendurada num fio ao pescoço, com uma foto esmaltada de uma mulher e uma
criança, e beija-a dizendo: “ adeus minhas queridas que nunca mais vos vejo”.
Impotente perante a situação curvo-me e toco-lhe no peito dizendo-lhe: “não
digas isso que estamos mesmo a chegar ao hospital”. Ele põe a medalha na boca,
morde-a e, com as duas mãos agarra-me no pulso, revira os olhos e tomba a
cabeça para o lado.
Os últimos minutos, até aterrar no hospital, foram feitos com aquelas mãos
fortemente cerradas no meu pulso, eu chorando compulsivamente, e a enfermeira
dando conta que todo o seu esforço e luta para roubar aquele homem das garras
da morte tinham sido em vão.
Apesar do desfecho infeliz, que certamente a não deixou dormir tranquila
naquela noite, tal como a mim, nos dias seguintes lá estava ela a lutar
novamente, com toda a sua determinação, para que uma vida fosse salva e fizesse
valer a pena todo o esforço e determinação empreendidos.
A 2ª foi numa operação com comandos africanos em Teixeira Pinto.
Transportámos as tropas até uma área determinada no mato e regressámos ao
aquartelamento aguardando ordens para mais tarde, após o seu confronto com o
inimigo, recolher os elementos transportados.
Estávamos a meio da operação quando recebemos ordens para levantar voo e
evacuar um nosso elemento que estaria ferido.
Dirigimo-nos ao local e ao aterrar, quando me preparo para saltar com a maca,
vejo um comando africano, alto e esguio no seu camuflado, dirigir-se, pelo seu
próprio pé, ao heli, com a sua arma numa mão e um saco de pano na outra, e com
aspecto de estar em transe hipnótico.
Abro a porta do heli e desço para o terreno para lhe abrir a porta lateral
traseira, mas ele entra e senta-se no meu lugar, com um ar muito hipnótico e a
transpirar desalmadamente, e coloca o saco de pano, tipo daqueles de ir ao pão,
com atilho na boca do saco, entre a cadeira onde se sentou e a da enfermeira.
Eu, privado do meu assento, entro para a parte de trás e sento-me nos bancos
traseiros, frente à enfermeira.
Durante o voo, ela começa a fazer-me sinal que sente um cheiro forte vindo saco
e interroga-me, por gestos, se sei o que será. Faço-lhe sinal que não, e ela
olha para o comando que continua em estado de transe com o olhar muito
distante, mas sem qualquer ferimento aparente.
Passam-se uns minutos e novamente a enfermeira me faz sinal do mau cheiro que
vem do saco, e tenta com dois dedos alargar o atilho do saco, sem que o comando
se aperceba. Após insistir mais um pouco logra alargar suficientemente a boca
do saco e dissimuladamente curva a cabeça para espreitar o seu interior.
Subitamente ouço um grito abafado da parte dela e vejo o seu ar aterrorizado, o
que me faz olhar rapidamente para o saco.
A cena é macabra, dentro do saco está a cabeça do inimigo que o comando tinha
morto e que, devido à sua religião, a tinha degolado para que o espírito desse
homem não o perseguisse no futuro ( ouvi essa explicação já após o entregarmos
na enfermaria com febres altíssimas ).
Foi um susto que nos apanhou de surpresa e que não esqueci tão cedo. Para a
enfermeira não deve ter sido fácil deparar-se com aquela cena, ainda mais que
tinha os dedos a milímetros da cabeça decepada.
Espero que estes dois episódios sirvam para que melhor se compreenda o valor e
a coragem das mulheres que tanto fizeram para minimizar o sofrimento de quem na
guerra lutou.
Com a minha sincera e estimada consideração
Nuno Almeida “poeta” – 1º cabo MMA – Guiné Jan/Nov 1972