quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Voo 1993 OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (3)







António Dâmaso
Sargº.Môr Paraqª.(Refº.)
Azeitão





OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (3)

Legenda: Fotografia parcial do Quartel de Guidage em DEZ1973,
Foto: Albano Costa (por cortesia)


Permanência em Guidage

Os dias que permaneci no Aquartelamento de Guidage foram os mais dolorosos de toda a minha vida.
Chegamos lá na noite de 23MAI73, com três mortos e um ferido grave, famintos, sedentos, desidratados e com o moral em baixo.
Quando entramos cheirava a cadáveres em decomposição, recebi ordem para colocar o meu pelotão, nas traseiras da cozinha, perto dos balneários, numa vala debaixo de umas árvores de grande porte, vim a saber depois que naquele lugar tinham dois dias antes, morrido dois militares e que estavam á espera dos caixões que deviam ter vindo na coluna que não chegou, sendo a causa do cheiro que se fazia sentir, não sei bem onde estes mortos se encontravam, lembro-me da existência de um abrigo na parada e que servia de enfermaria, donde vinha um cheiro insuportável.Na primeira noite só eu e mais uns quantos dormimos junto da vala os restantes foram para um abrigo que estava perto, não sei como cabia lá tanta gente, eram beliches com camas sobrepostas, até havia militares a dormirem debaixo das camas, estavam militares do Exercito, Fuzileiros e Pára-quedistas, era tudo ao molho, pensei que se caísse lá uma granada perfurante fazia uma razia.
Quando espreitei à porta estavam a ouvir uma rádio pirata, a voz da libertação não sei quê, entre outras coisas foi lá que ouvi pela primeira vez que o Quartel de Guileje tinha sido abandonado.

Legenda: O Alluete III efectuando uma evacuação à zona.
Foto:Pierre Fargeas(direitos próprios)

No dia 24 MAI73, foi lá o Héli em missão arriscada em voo rasante, segundo se disse na altura pilotado pelo Comandante da Base, dizia-se que os pilotos não queriam levantar, o que eu acho que não correspondia à verdade, porque estiveram na operação “ Ametista Real” e quando em 23 a CCP 121 esteve cerca de 50 minutos debaixo de fogo numa emboscada em Cuféu, eles foram lá salvar-nos o “coiro”, esse Héli levou-nos correio e dois pares de meias novas que nos deram muito jeito, dizem ter lá ido o Gen. Spínola mas não me lembro do ter visto, vi sim, o Major Pára Calheiros, o ferido grave do 2.º Pelotão, o Melo, foi evacuado para o Hospital Militar de Bissau acabando por falecer também.
Ainda no mesmo dia manhã cedo, o chefe da Tabanca de Guidage, deslocou-se à bolanha do Cuféu e disse ter lá visto três guerrilheiros mortos, mas que não tinham as armas, ficámos assim a saber que eles também sofreram pelo menos três baixas.
Parte do quartel do Guidage estava construído já no Senegal, até diziam que metade da pista era no Senegal, uma coisa era certa é que as DO 27 para aterrarem ou levantarem, tinham que voar por cima do Senegal, isto antes de terem abatido num só dia três aviões na zona, a pista era pouco mais que o campo de futebol, era um ponto alto de onde se avistava no Senegal, relativamente perto, uma estrada com movimento de viaturas.
Como vi o meu pessoal tão por baixo, eu não estava menos mas tinha o sentido da responsabilidade de comando, pedi ao comandante da companhia para falar com eles, ele assim fez e para fazer ver que ainda éramos pára-quedistas, no dia 25MAI73, saímos pela estrada que ia para Barro, mais à frente derivamos para a esquerda, a corta-mato e fomos ao Cuféu, estivemos no local onde tínhamos sofrido a emboscada, quando vi o local onde nós tínhamos estado “abrigados”, ao ver tudo arrasado deduzi que tivemos sorte por não ter havido mais baixas, viam-se espalhados pela zona alguns cadáveres abandonados, já só as ossadas por terem sido comidos pelos bichos.
Aquela saída foi muito positiva para levantar o moral, porque tanto na ida como no regresso, na zona de Ujeque fomos alvo de tentativa de flagelação, como mais tarde alguém escreveu, “que não se saia nem entrava no quartel sem haver tiros”.
Não sei se aquela saída foi ordenada pelo Comandante do COP 3, apesar de estarem lá militares de outras armas mais descansados do que nós, coube-nos a missão e ficou aqui demonstrado que naquelas condições, as Tropas sitiadas devem fazer segurança próxima e afastada, é dos livros e tem-se verificado na prática que existindo grandes abrigos fortificados, mas, se não existir segurança próxima e afastada, correm o risco de com uma simples granada lacrimogénea, os saquem de lá “ pelas orelhas”.
Entretanto já tinham sepultado os dois mortos que já lá estavam quando chegamos, agora eram os nossos que já estavam em decomposição o cheiro era insuportável, eu ia comer perto da enfermaria onde os nossos três mortos tinham sido depositados sobre camas sem colchões, não existiam sacos para cadáveres, a refeição era um arroz aguado, espécie de canja temperada com um sal dum chispe de porco enlatado, que eu vi desenterrar na “parada”, para lhe ser aproveitado o sal, estava comer e o cheiro que vinha da enfermaria interferia-me com o paladar.
Mais uma vez falei com o Comandante de Companhia no sentido de acabar com aquela situação, dando-lhes sepultura, tendo em conta a meu ver, que nada mais podíamos fazer por eles, não sei se o meu pedido teve alguma influência, mas foi assim que eles foram sepultados enrolados num lençol e pano de tenda, ao lado dos outros dois que já lá estavam.
Foi uma tarefa dificílima, eu que sempre evitei situações complicadas, mas há alturas em que por muito complicadas que sejam, temos de dar um passo em frente e voluntariei-me juntamente com o maqueiro/enfermeiro do meu pelotão Carvalho (1), mesmo com mascaras embebidas em álcool, foi difícil de suportar, estavam irreconhecíveis, se não fossem as etiquetas que tinham no dedo do pé, não sabia quem eram, fez-me alguma confusão como é que tinha entrado em decomposição em tão pouco tempo.
Tive conhecimento que num alojamento dos oficiais ou dos sargentos havia vaga, sei que um tenente da minha Companhia dormia lá, não me fiz rogado e fui para lá dormir, pelo menos sempre dormia num colchão já que o risco era eminente em qualquer lado.
Não me lembro de ver sentinelas enquanto lá estive, se as havia eu não as vi, também não as fui procurar.
Enquanto lá estive, deambulei por lá sem grandes curiosidades, até porque a minha condição psico-física não mo permitia, apenas estava preocupado para que em caso de ataque eminente, teria de defender a zona que me tinha sido distribuída, nesse contesto analisei o terreno envolvente, vi onde estavam todos os meus homens, porque a segurança não podia ser descurada, assim fui à sala de transmissões onde funcionava o comando e troquei impressões com que lá estava, já tinha tido três baixas e queria fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para não ter mais, em virtude de estar consciente do perigo que todos corríamos.
As flagelações eram frequentes, numa destas houve uma granada perfurante que entrou num abrigo de um Obus matou seis ou sete numa assentada, ficaram pendurados nos beliches. Naquela zona morria-se em emboscadas, dentro do quartel em valas e abrigos, a morte espreitava em qualquer lugar.
Lá foram mais uns quantos sepultados no cemitério improvisado, assim continuámos no antro de morte, o ar que respirávamos cheirava a morte, no dia 29MAI73 recebemos ordem de ir ao Cuféu fazer segurança para que não fossem emboscar uma coluna que vinha de Farim, desta vez tiveram o bom senso de trazer um Caterpillar a abrir picada nova, mesmo assim foi mais uma viatura pelos ares, na zona de Genicó, tendo provocado um morto e um ferido grave, a coluna no lado direito vinha escoltada pela CCAV 3420, comandada pelo Cap. Salgueiro Maia, nós saímos para ir fazer segurança ao Cuféu e o Destacamento de Fuzos saiu atrás de nós para ir para Ujeque.
Quando estávamos a entrar no Cuféu captei no meu rádio, uma transmissão entre o Cap. Salgueiro Maia e o meu comandante de companhia, em que o primeiro perguntava qual a nossa localização porque estavam a avançar para ele em linha, cerca de cem militares/ guerrilheiros com boina verde, o segundo respondeu que não éramos nós porque estávamos na bolanha do Cuféu e não usávamos boina no mato, da conversa fiquei a saber que se conheciam da Academia Militar onde o Comandante da minha C.ª era conhecido por “Vietcongue”, aqui que ninguém nos ouve, nos Pára-quedistas tinha a alcunha de “Cara de Aço”, talvez devido ao seu ar grave, (com o devido respeito).
Quase de imediato ouviu-se um forte tiroteio na posição dele, desta vez o PAIGC foi tentar a sorte mais para frente, ao que parece ainda fizeram mais duas tentativas, mas a CCAV 3420 bateu-se bem e chegou para eles.
Até que chegaram à nossa posição, depois da travessia da bolanha, uma viatura Unimog saiu fora do trilho e pisou uma mina, mais um ferido grave, depois de passarem por nós a minha companhia seguiu atrás em protecção à retaguarda, mesmo assim ainda perto da zona de Ujeque, fizeram uma tentativa de nos flagelar, desta vez coube à minha companhia repeli-los, já de noite lá chegamos a Guidage.
A única coisa boa que me lembro de ver enquanto lá estive, foi haver sempre água corrente.

(1) O Carvalho mais conhecido por Carvalhinho, veio a falecer em combate na Operação Topázio Poderoso, na Região de Cubonge em 22JUL73.

Saudações Aeronáuticas

Dâmaso

Voos de Ligação:

Voo 1984 Operação Mamute Doido”(2) António Dâmaso