Manuel Bastos
Fur.Mil.Op.Esp.
Aguim
Eu a olhar para dentro do cacifo e a pensar “que diabo vim eu aqui fazer?”
Acabei por desistir, e dirigia-me já
para a cama quando me lembrei de ter visto a tua foto descolada. Voltei para
trás e tornei a abrir o cacifo.
Parece impossível, mas a tua foto
descolou-se de novo. Todas as outras fotos se mantêm no lugar, a tua é a única
que teima em descolar-se. Parece bruxedo.
Devo ter estado imenso tempo a olhar
para dentro do cacifo, porque o furriel Bastos passou por mim com um carregador
de G3 na mão, e disse:
– Parece que tens alguma coisa contra
esse cacifo.
Se não fosse cá por coisas mandava-o à
merda. Gosta de se armar em esperto.
Agora vim sentar-me na cama. Da cama eu
vejo uma nesga da parada e ao longe o refeitório. E depois, árvores e mais
árvores. Nada nem ninguém me impediria de me levantar e ir em linha reta até
àquelas árvores e depois, não parar, seguir sempre em frente até desaparecer.
Levariam muito tempo para darem pela minha falta, o tempo suficiente para eu me
pôr ao fresco. Mas claro que não farei isso; não por patriotismo ou falta de
coragem, mas pela mesma razão que nenhum dos meus camaradas o fará. É que não
há nada para além do refeitório, durante centenas e centenas de quilómetros. A
não ser árvores, claro.
Estamos presos neste lugar danado, numa
prisão sem muros, sem nada que nos impeça de fugir. A não ser a distância.
Estamos a uma distância louca de qualquer sítio para onde possamos fugir.
O furriel vem aí de novo, agora com a
coronha da G3. Vem longe e já vem a arreganhar-se. Vai dizer mais uma piada,
pela certa.
– Deixa lá, não fiques assim, ainda vais
encontrar um cacifo que te entenda.
Às vezes penso que o senso de humor pode
ser um disfarce para a estupidez. Que anda ele a fazer, levando uma peça da G3
de cada vez?
Reparo agora que estou sozinho na
caserna, e a nesga da parada não tem ninguém. Parece que neste fim-de-mundo só
estou eu e o furriel. Eu a magicar naquela coisa estranha de a tua foto se
descolar a toda a hora, e o furriel que parece andar a roubar uma G3 peça a
peça.
É tudo tão estranho quando a nossa vida
é vivida fora do seu lugar. É como tentar usar um carregador de uma Kalash numa
G3.
Dou por mim a pensar: não sou daqui,
estou aqui a mais, e parece que ninguém se sente feliz por eu aqui estar; e no
entanto, se eu tentar fugir podem até matar-me.
Não sou muito inteligente, não sei
muitas coisas, é verdade, mas entendo que isto não faz sentido, e por isso não
pode acabar bem. E as muitas pessoas que sabem mais do que eu já entenderam tudo
há muito tempo, e é isso que mais me chateia. Nós aqui a aguentar esta guerra
como se ela fosse para durar sempre, e as guerras são para ganhar ou para
perder, percebes Zulmira? Nós fomos atirados para a fogueira e depois
esqueceram-se de nós. Por isso sinto uma raiva enorme por eu valer tão pouco;
por eu ser obrigado a estar aqui e mesmo assim fazerem de conta que eu não
existo. Eu sou um carregador de uma Kalash metido numa G3, mas sou tão pouco
importante que ninguém dá por isso. Sou uma personagem de uma história mal
contada.
De repente lembrei-me do que queria do
cacifo e voltei a abri-lo. E lá está a tua foto de novo descolada. A fita-cola
é igual à das outras, mas só a tua foto é que se descola. Descola-se no bordo
de cima, depois cai, presa no bordo de baixo, e fica de costas para mim com a
dedicatória de pernas para o ar: “Gardo-me para ti”. Fiquei imóvel a olhar para
aquilo ignorando novamente o que vim fazer.
– Gosto de vos ver assim amigos de novo.
O palerma do furriel a escangalhar-se de
riso, agora com o cano da G3 a passar por mim, em direção à parada. Ele deve
entrar pela secretaria mas quando sai, passa de propósito pela caserna, para me
chatear. Vejo-o durante uns segundos a caminhar na parada e depois desaparece.
Dou conta que ficou aqui o maior
silêncio. Não se ouve nada.
Nunca me senti tão só.
Para lá do refeitório a floresta sem
fim. Um mundo vegetal que esconde um universo misterioso feito de coisas que me
são estranhas e que me fascinam.
Agora que sei, tantos anos depois,
Zulmira, que te perdi no dia em que fui para África, penso que estive numa
terra que me deslumbrou mas que nunca conheci, onde estive preso sem cadeias, e
que combati numa guerra onde morri embora tenha regressado.
Mas o que regressou de mim foi apenas um
restinho que a guerra não matou.
A tua foto foi comigo e voltou comigo.
Enquanto isso, tudo a mudar à nossa volta. O mundo inteiro enlouquecendo à
nossa volta, e o teu sorriso na foto sempre igual. Morreram pessoas, e as que
sobreviveram mudaram tanto que se pode dizer que também morreram e que vieram
outras no seu lugar.
Quanto de mim recebeste tu de volta,
Zulmira? E quanto de mim guarda ainda a memória do meu amor por ti?
A dada altura, tive uma certeza tão
grande – uma certeza absoluta – de que deveria fazer qualquer coisa, mas fiquei
parado vendo apenas as coisas deixarem de fazer sentido à minha frente.
Parado, como o teu sorriso na tua foto,
o teu sorriso que teimava em se esconder como um mau agouro.
A tua foto a querer dizer-me alguma
coisa, como um sinal teu atravessando o mundo todo para chegar até mim. Mas que
pode fazer um soldado em que ninguém repara, embora não pudesse estar mais fora
do seu lugar? Como um carregador de uma Kalash metido numa G3.
Um soldado preso à guerra, sem ter para
onde fugir.
Morri em África, Zulmira; o que
regressou de mim foi a parte que resistiu à loucura do mundo, porque não sofre
nem ama.
O dedo no gatilho e as mãos já não me
tremiam. Deixei de se eu, Zulmira, quando as mãos deixaram de me tremer ao
disparar a G3.
Voltava a África se pudesse, voltava ao
passado para fazer alguma coisa. Alguma coisa que me fizesse hoje ter a certeza
de que não morri lá.
Gostaria de voltar a África para conhecer
África sem guerra, sem o peso do perigo que não deixava apreciar a paisagem.
Voltava, para ver como era a largueza da
terra sem o cansaço do corpo e a fadiga do olhar, para ver como era a paciência
do tempo sem a ansiedade e sem o medo da morte.
E sem a saudade de ti, que me ia
modificando lentamente, transformando-me em alguém que fui deixando de
conhecer.
Voltava para um tempo onde ainda havia
alguma coisa em mim que sofria e que amava, quando olhava o teu sorriso na
foto. Um tempo em que o nosso amor ainda fazia sentido.
Voltava, se tu pudesses ir comigo para
corrigir a história das nossas vidas. Uma história mal escrita, com uma guerra
pelo meio.
Uma história que eu sei, como se ma
tivessem contado, sobre um amor de que já não me lembro bem. E o amor precisa
de ser lembrado, porque o amor é uma coisa da memória.
Uma história que continuou até hoje, mas
que nunca se livrou da guerra.
Esta nossa história, Zulmira, que vamos
vivendo e de onde se vê sempre a guerra ao fundo.
Sempre, sempre ao fundo.
Para deficientes visuais, ouça a versão
áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios
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