Manuel Bastos
Fur.Mil.Op.Esp.
Aguim
Coimbra
Fur.Mil.Op.Esp.
Aguim
Coimbra
Esqueci-me do meu pé esquerdo. Sei que
era como o direito mas ao contrário. Não me lembro muito bem, mas acho que não
era um pé muito especial, porque para além de andar e correr não me servia de
mais grande coisa. Bem vistas as coisas, para o futebol eu tinha até dois pés
esquerdos, era, por assim dizer, ambissinistro. Mas dava-me muito jeito para
nadar. O meu amigo Vasco acompanhava-me de barbatanas na dobragem do paredão
Sul da barra de Aveiro e ria-se do meu estilo pouco ortodoxo, um misto de crawl
e bruços, mas não me levava vantagem por muito tempo.
Na verdade, só me esqueci
da imagem do meu pé esquerdo – se teria um sinal particular, ou alguma cicatriz
que o tornasse especial – pois sinto-o agora melhor do que quando o podia ver.
Chame-se “sensação do membro presente” esta sensação de ter um pé… que está
ausente. É diferente da “dor fantasma” porque simplesmente não dói, e faz com
que o ProFlex Foot XC fabricado na Islândia pareça mais real. Este cérebro
humano acha estranho que dali não venha nenhum sinal de vida e aumenta a sua
própria sensibilidade para ver o que acontece. E o que acontece é que se sente
um pé onde apenas está uma engenhoca de duralumínio, titânio e fibra de
carbono.
Para um espírito otimista, alguma coisa
de bom haveria de ter um pé de metal, mas eu ainda não descobri nenhuma, mesmo
quando o cão de um vizinho me tentou ferrar. Eu ofereci-lhe a prótese, mas o
faro do bicho tramou-me.
No dia de Páscoa de 1972 tiraram-me uma
fotografia em Mueda, onde ele aparece pela última vez, muito sossegado ao lado
do seu irmão direito. Alguns meses depois pisou o chão de África pela última
vez, despedindo-se deste mundo com muito estrondo, tanto quanto seria possível
com o quarto de quilo de trotil de uma mina antipessoal, tendo acabado aí a sua
missão de me transportar a meias com o seu irmão simétrico.
Para ser justo, não poderei subestimar
as suas qualidades, tanto mais que as várias tentativas para o substituir
condignamente falharam redondamente, a começar pelo trambolho tosco e
mal-amanhado que rematava a perna de pau desequilibrada e rudimentar com que os
nossos parceiros alemães da NATO queriam que eu voltasse a caminhar. Vim da
Alemanha com um objeto de tortura medieval que deve ter chegado para espiar os
meus mais escabrosos pecados. Tanto os já cometidos como os que eu venha a
cometer até ao dia do juízo final.
Os meus netos parecem achar interessante
que o avô se pareça com o cyborg dos seus jogos de vídeo quando anda de
calções, e pensam que deve ter sido um ato de guerra heroico que esteve na
origem da minha amputação. Aqui nasceu uma dificuldade didática, porque na
verdade eu dei o que dão os heróis quando combati na guerra colonial, só que
uma guerra é talvez o lugar menos provável para se praticar atos heroicos, e
numa guerra criminosa como esta, se não tivermos muito cuidado arriscamo-nos
até a cometer crimes.
Como se explica a uma criança da geração
do Google que isso foi possível apenas por desinformação? E que o país onde a
chateiam para aprender imensas coisas, é o mesmo país onde um dia a ignorância
era obrigatória, onde as escolas tinham um livro único e os jornais um lápis
azul para os ignorantes riscarem as coisas ditas por pessoas inteligentes.
É tão difícil explicar uma coisa
estúpida a uma criança inteligente como uma coisa inteligente a um adulto
estúpido.
Antes de eu partir para a guerra a minha
mãe parece que fez um contrato com a Nossa Senhora de Fátima para garantir que
eu vinha de lá são e salvo, cujo compromisso da sua parte era ir a pé de Aguim
até à Cova da Iria todos os anos. Nunca percebi o que ganhava a santa com aquilo,
mas desconfiei sempre que se tratava de uma tara originada pela vida
sensaborona de uma virgindade eterna. Além disso, pareceu-me que tendo vindo eu
sem um pé, a minha mãe não deveria pagar a promessa por inteiro, mas não
consegui convencê-la a ir a pé, digamos, até Coimbra apenas.
Um dia, no verão de 1965, na praia da
Costa Nova, a Marisa sentou-se mesmo em cima do meu pé esquerdo. Com o peso da
Marisa o meu pé esquerdo enterrou-se na areia e ela esteve bem meia hora
naquela posição sem dar por nada. Passado um quarto de hora sem me mexer, para
sentir todas as delícias da região sagrada da anatomia da Marisa, o meu pé
esquerdo ficou dormente, depois acabou por ficar totalmente insensível. Foi a
primeira vez que o meu pé esquerdo sofreu uma amputação, ainda que virtual, mas
aquele primeiro quarto de hora teve os melhores 15 minutos que o meu pé
esquerdo viveu.
No inverno de 1971, na casa de banho
comunitária do quartel das Caldas da Rainha, o meu pé esquerdo, e apenas o meu
pé esquerdo, desenvolveu uma infeção fúngica. O Capitão médico do quartel, num
relance, garantiu com ar categórico - É pé de atleta! Soou-me, assim de
repente, mais a uma distinção desportiva do que a um diagnóstico médico. O pior
é que durante o resto da minha vida de militar vi-me obrigado a introduzir um
gesto extra em todos os exercícios físicos: coçar o pé de atleta.
Esse martírio só terminou na picada do
Chindorilho, na província de Cabo Delgado da colónia de Moçambique, exatamente
às 14 horas e 12 minutos do dia 4 de Junho de 1972. Nem o antifúngico do
capitão médico, nem as pomadas de todos os enfermeiros do meu batalhão
resolveram o problema, só a mina antipessoal da FRELIMO lhe pôs fim.
Este desfecho fatal aconteceu ao meu pé
esquerdo porque eu acreditei que era um dever humanitário ir matar terroristas
para África e salvar o império. Pelo menos foi assim que eu entendi as coisas.
Sempre que precisam de mandar soldados
matar alguém, convém convencê-los que são terroristas; e quando os professores,
os livros e a imprensa dizem em coro que são terroristas, a gente acredita, não
é verdade? O pior é quando se descobre que os terroristas são demasiado
parecidos connosco, ou que estamos a rematar para a baliza errada. Cria-se-nos
a confusão mental típica de quem aparece por engano num funeral vestido com uma
fantasia de carnaval. Alguém se aproveitou da nossa ignorância, e o pior é que
também nos mantiveram ignorantes compulsivamente desde início para melhor se
aproveitarem de nós.
Se isto não é abuso moral por parte do
Estado é de certo escravatura intelectual. Impediram-me o acesso ao
conhecimento para poderem usar a minha ignorância.
Do Estado não exijo muito mais para mim,
na reparação material da minha lesão física de guerra, ao contrário de muitos
camaradas meus verdadeiramente injustiçados, mas
exijo um condigno e honorável pedido de desculpas pela lesão moral, se não a
mim pessoalmente, pelo menos, a título póstumo, ao meu pé esquerdo.
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