quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Voo 3551 NO OLHO DO CÚ DO PLANETA.






José Raimundo
Esp.MMA
Coimbra


Um cão vadio, esquelético, vagueava na placa encostando o focinho ao chão na esperança de encontrar algum resto de nada. Àquela hora da manhã, o silêncio era quase absoluto.Todavia,ouviam-se vozes vindas do lado do refeitório.Eram os nossos companheiros da cozinha que aprontavam o pequeno-almoço.Daí a nada, o sol começava a despontar e com ele apareciam à porta dos pseudo quartos/camaratas, espreitando o dia os primeiros madrugadores. Os mais sornas, continuavam na posição horizontal indiferentes aos impropérios dos circundantes. Na placa, um T6 esfumaçava preparando-se para proteger o helicóptero que se dirigia algures ao mato ou picada para retirar mais uma vitima daquela "pUma neblina envolvia o quadrado de arame farpado plantado na crista do planalto dos Macondes. Através daquela névoa molhante, vislumbravam-se as silhuetas dos aparelhos descansando merecidamente do esforço dispendido na véspera.uta" de guerra. Uns metralhas colocavam bombas nos aviões, enquanto outros preparavam o caldo para a confecção do "ovo" que seria ofertado pelos Fiates.. Os mecânicos dos "zingarelhos", entregavam-se a pequenas tarefas nos seus queridos meninos e, à falta de peças, sacrificava-se aquele que na circunstância servia de "vaca". Os dosTeco-Tecos, operavam de igual modo, com o mesmo zelo e carinho. Ao lado ouviam-se os de rádio/comunicações fazendo o check-in na tentativa de ouvir um 5 por 5 tudo ok. No intervalo de uma borradela de mãos, espreitava-se a porta do bar. Se, se encontrava aberta, numa escapadela, ia-se até lá para tirar a secura da garganta. O sol continuava em plena ascenção obrigando-nos a tirar a camisa e pôr os couratos a tostar. Havia uma certa acalmia dando a sensação que a guerra andava por outras paragens. Pura ilusão! Não raras vezes o camarada de serviço às comunicações, revelava o seu nervosismo quando as chamadas de socorro eram mais que muitas. Incitava-nos para que o 112 aéreo fosse feito sem perda de tempo. Alguém estaria a sofrer, vítima das malditas minas ou de uma emboscada traiçoeira. Quase sempre vinha um ser humano que há pouco cheio de vida e agora transformado num monte de carne disforme. À noite os amantes da lerpa satisfaziam as suas preferências. A maioria, mergulhava nas profundezas do líquido que exalava um cheiro doce e gosto tentador.Quando menos se esperava. por cima de nós passava um som agudo. Era a hora maconde e os obuses do PAD faziam tiro para a terra de ninguém. Nas camaratas, escrevia-se os bate estradas para a família, ou para as-mais-que-tudo, com as promessas de um amor eterno e manifestações de carícias ardentes. Alguns, faziam levantar a roupa da cama em movimentos mais ou menos cadenciados, sonhando co o imaginário feminino e outras fantasias. Que remédio... O sono não tardaria a chegar.Os que estavam de ronda, matavam o tempo à espera que a hora das rendições chegasse. Durante a noite a ronda metia respeito. Os menos afoitos tentavam convencer um outro camarada para o acompanhar. Nesse período, tinha-se por companhia o roncar penoso dos geradores da central. Os neons dos postes estavam envoltos por uma auréola circular e esvoaçando à sua volta centenas de insetos. As aves noturnas, causavam arrepio com o seu piar prenúncio de agoiro.Aqui e além ouvia-se o rugido de uma fera e a adrenalina subia até ao último traço da escala. para além do arame farpado, ficava por saber o que se estava a passar naquele momento. A descompressão só acontecia quando o corpo era vencido pela fadiga. Termino com algumas palavras que alguém escreveu um dia: " lá longe onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor. E à noite, com os olhos postos no céu, rogamos ao nosso Deus, que nos dê a salvação!" Seria bom que os responsáveis deste país também tivessem coragem e valor para não deixarem ao abandono aqueles que se sacrificaram pela Pátria e que hoje têm uma mão cheia de nada. Estes apontamentos vão direitinhos aos camaradas que me atecederam, aos que tive por companhia durante aqueles dois anos e aos camaradas do exército que tanto sofreram.
José Raimundo-Índio MMA 1ª/68

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