domingo, 24 de outubro de 2010

Voo 1962 MEMÓRIAS QUE NÃO DEVO ESQUECER.



Nuno Almeida
Esp.MMA
LISBOA



Ao ler o voo 1959, do Lanceiro, percebi que, apesar de não ter queda para transcrever o que na cabeça e no coração me vai, devo fazê-lo para que a nossa passagem pela F.A. seja melhor entendida, principalmente por aqueles que, antecipadamente, eram preparados para a guerra (e que não era o nosso caso). Éramos simples mecânicos que se viram confrontados com situações que não nos eram familiares. Mesmo dentre o nosso seio de especialistas, creio que os que não eram da linha da frente dos helis ou das DO's, não se apercebiam o que se passava com esses camaradas que iam às zonas de guerra, resgatar feridos e mortos.
Começo por recordar a minha primeira evacuação de um fuzileiro em zona de combate:
Com poucos dias de Guiné, e estando na linha da frente dos ALLIII, fui chamado pelo Ten. Glória, que me diz: como esta evacuação é uma coisa simples, vai o "poeta" para se treinar a recolher o ferido e a introduzir a maca em situação de emergência.
Recorde-se que tinha 21 anos, feitos há 2 meses, e nenhuma preparação para lidar com a guerra e muito menos com a morte!!!

Legenda: Uma evacuação chamada "À Zona"
Foto:Miguel Pessoa(direitos reservados)

Fui, recolhi o ferido, levantámos vôo, e a enfermeira (que não recordo quem era, visto ser piriquito) começa, de imediato, a tentar estabilizá-lo, dando-lhe morfina e introduzindo-lhe soro.
Olho para baixo e vejo um corpo em tronco nú, com o ventre todo aberto, uma cara pálida, de bigode, com os dentes em esgar de dor e sofrimento, e segurando uma medalha esmaltada, presa num fio ao pescoço, com a foto da mulher e da filha, que beijava ininterruptamente, dizendo: minhas queridas, nunca mais vos vou ver.
Eu, tentando dar-lhe ânimo, ponho a minha mão no seu peito e digo que não deve dizer isso porque estamos já a poucos minutos do Hospital.
Repentinamente, aquele homem, que para sempre permanecerá no fundo das minhas memórias, cerra os dentes na medalha, com as duas mãos aperta-me o pulso, revira os olhos e a cabeça tomba para o lado, morto.
Até à chegada ao Hospital, vim dobrado sobre ele, com aquelas mãos apertando-me tão fortemente, que não consegui libertar-me. Só os maqueiros do Hospital conseguiram separar-nos.
Chegados à BA12 fui direito ao ten Glória, chamando-lhe todos os palavrões que pude e dizendo-lhe que nunca mais iria fazer evacuações, nem que ele me matasse.
Na sua sabedoria e como humano que era, disse para me acalmar, que fosse descansar e regressasse quando quisesse.
Não sei como, mas esqueci o sucedido, e, no dia seguinte, apresentei-me ao serviço sem nunca mais lembrar essa evacuação.
Só muitos anos mais tarde, acordei, a meio da noite, a ver aquele rosto pálido, de bigode, com um esgar nos dentes, a tombar a cabeça de olhos revirados, e chorei como tinha chorado em 1972 na Guiné.

O Poeta


VB:Bom Dia,Nuno.
À muito tempo que aguardávamos uma aterragem tua, que só agora se verificou e com uma excelente e real discrição de acontecimentos que, só nós da linha da frente, infelizmente vivemos, embora no caso dos pessoal dos "zingarelhos" *
fosse vivida de uma maneira mais directa visto a evacuação muitas vezes ser feito no próprio local onde o ferido foi atingido.
É um relato que devia ser lido por todos aqueles que muitas vezes põe em dúvida a nossa operacionalidade no teatro de guerra na Guiné.
Gostava que este teu voo servisse de incentivo a muitos dos nossos camaradas especialistas, bem como pilotos e enfermeiras, para que, tal como tu viverão situações deste género, nos descrevessem na 1ª pessoa.
Mas não deixaria de ser menos importante o relato dos evacuados que hoje estão vivos e com saúde.

*Como alcunhavamos ao All III