quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Voo 1969 MEMÓRIAS QUE NÃO DEVO ESQUECER - II


Nuno Almeida
Esp.MMA
LISBOA








Esta memória, excepto nalguns pormenores, pouco difere da relatada anteriormente.
Mas, como o objectivo a que me proponho é o de relatar o que se vivia, e o que se sentia, no terreno, nomeadamente nas evacuações, aqui vai a estória de uma outra evacuação que para sempre se me fixou na minha mente e nos meus sonhos e que me modificou para sempre.

Passo a relatar:

Levantámos vôo (omito o nome do piloto) para uma operação que se designava "comando de sector" e que consistia em ir recolher um Coronel (creio que em Bambadinca) e visitar as unidades que ele comandava.

Estávamos na 3ª ou 4ª visita, quando o piloto recebe ordem para deixar o Coronel no aquartelamento mais próximo e seguir para uma zona onde as nossas tropas tinham sido atacadas, e onde era necessária uma evacuação urgente.

Assim se fez e, chegados ao local, avistámos o oleado (amarelo/laranja?) indicando-nos o sítio para aterrar.

Esse sítio era numa pequena clareira, entre árvores com cerca de 20 metros de altura, pelo que o piloto teve que descer à vertical, comigo de porta aberta a dar-lhe conta das distâncias entre os rotores e as árvores.

Assim fomos descendo, até que, já bem perto do chão, reparo que na traseira havia alguns pequenos arbustos que iriam danificar o rotor de cauda se descêssemos mais.

Aviso o piloto, que de imediato, ordena que as tropas em terra, cortem ràpidamente esses arbustos, e ficamos em estacionário, a cerca de 3 ou 4 metros do chão, no meio daquele poço entre árvores enormes, e damos conta que nelas estão dezenas de macacos (creio que babuínos) enormes que ameaçam querer saltar para o heli.

Enquanto os homens em baixo, cortam os arbustos, eu continuo de porta aberta a informar o piloto da distância entre as pás e as árvores, e ao dar uma olhadela mais penetrante para baixo vejo um homem de camuflado, amputado das duas pernas acima dos joelhos e que, insistentemente, coloca as mãos juntas, como que a orar, e de seguida bate com o indicador direito no pulso esquerdo, e que, só ao fim duns segundos, percebo que ele me quer dizer: "por favor, depressa, já não tenho muito tempo"!!!

Aterrorizado, faço-lhe sinal que já só faltam uns segundos, e fico ali a receber e a enviar sinais de que já está quase, mas com uma profunda angústia, pois parece que os arbustos nunca mais são cortados, apesar dos gritos desesperados e ameaçadores que o piloto endossa para os homens em terra.

Finalmente, após o que pareceram horas, conseguimos aterrar, e salto com a maca para junto do homem ferido. Coloco-me pronto para o levantar, segurando-o pelos ombros, com dois homens, do outro lado, para o içarem pelos coutos que sobravam do que tinham sido as suas pernas, quando ao baixar-me, vejo que, aqueles olhos que sempre estiveram a falar comigo, se fecham e a sua cabeça pende para o lado, terminando, ali a sua existência terrena.

Desata tudo num lamento e num choro que, homem algum, normalmente, confessa ter feito.

O dilema põe-se: O homem está morto. Devemos levá-lo ou deixar que sejam os seus camaradas a transportá-lo, pela mata, até ao aquartelamento? Ouço o piloto gritar-me: "poeta, põe o homem cá dentro!". Assim fiz, e, já no ar, o piloto reporta, via rádio, que o evacuado acaba de falecer em pleno vôo.

Chegado à BA12, fiz a inspecção e lubrifiquei o heli, e, depois de um banho tomado, fui para o Bar dos Especialistas, beber umas cervejolas e esquecer o que tinha visto, porque isso só era para relembrar muito mais tarde, numa noite de sobressaltos, muitos anos depois.

Nuno


Voos de Ligação:
Voo 1962 MEMÓRIAS QUE NÃO DEVO ESQUECER.