Manuel Bastos
Fur.Mil.Op.Especiais
Aguim
Coimbra
Fur.Mil.Op.Especiais
Aguim
Coimbra
Na Estação Velha de Coimbra, a esta
hora, há sempre meia dúzia de pessoas a dormirem nos bancos. Passageiros com a
viagem interrompida por algum motivo. Como se a noite os tivesse encontrado a
meio da sua rota por mero acaso e eles sentissem que o relógio do corpo
começara a ficar sem corda e que os membros, como ponteiros flácidos,
começassem a perder toda a tenacidade, e a consciência se volatilizasse num
prazer fluído pelo corpo todo.
O prazer de ir na corrente, de deixar
que a gravidade nos puxe para o fundo até sermos apenas uma sombra de nós
mesmos, apenas uma sombra difusa. Lá em cima, acima da linha de água, alguém às
vezes chamando por nós, e a tentação de ir ao fundo, a vertigem da queda no
abismo, a preguiça de lutar pela consciência… ou o medo.
Acordar para quê? A voz a chamar por
nós, e uma parte de nós a querer responder e a outra a querer deixar-se ir.
A realidade pode ser intolerável. Nunca
sabemos, ao acordar, onde estamos a acordar. Será que ao nosso lado vamos
encontrar o rosto que chama por nós de sorriso cúmplice, por entender muito bem
o motivo da nossa preguiça matinal, ou será que ao ouvirmos a voz que chama por
nós, não vamos sentir coragem nenhuma de abrir os olhos porque o pesadelo que
tivemos pode ser a realidade que nos espera? – Acorda! Acorda! Dão-me palmadas
no rosto. Soldados a gritar à minha volta e o pó ainda quente da explosão da
mina a descer devagar sobre mim.
Ou será que vamos acordar numa cama
imunda de hospital? O cheiro nauseante da creolina e do éter, e a ilusão de que
afinal o corpo está todo ali, porque todo ele dói. A dor em cada dedo do pé que
vi desaparecer na picada ressuscitado inexplicavelmente. A reconfortante, a
maravilhosa, a miraculosa dor! Excruciante, como se uma turquês estivesse a
esmagar cada osso, cada tendão, cada nervo, mas ao mesmo tempo tão redentora, a
devolver-me o pé perdido na explosão da mina. Será? Ou mais um pouquinho de
lucidez e ao fundo, na cama, apenas um alto sob o lençol? E o cabo enfermeiro a
explicar: "São dores fantasmas, furriel, pecebe?" Enquanto na
cama ao meu lado o Lemos delira sob o efeito da morfina: "Sou um pirata da
perna de pau, olho de vidro e cara de mau".
Perante o meu olhar atónito o enfermeiro
tenta uma comparação: “Se cortarmos esse fio e mudarmos o interruptor para o corredor,
lá dentro a luz acende à mesma na cama 6, pecebe?”
Acordar apenas para a dor. A dor inútil.
A dor sem corpo. A dor fora do corpo. A dor no local onde deveria estar a coisa
que dói, mas que não está lá. Só lá está a dor. Uma dor em cada dedo, onde não
há dedo nenhum. A dor ali, no ar, a dois palmos do coto. A dor por cima do
lençol sem nenhum relevo sobre a cama, a dor mesmo no local onde se lê
"Hospital Militar".
O comboio está aqui parado há imenso
tempo, e pelos altifalantes somos avisados de que se encontra uma composição
avariada a obstruir a linha. Imagino-me a caminhar na gare. Recordo as inúmeras
vezes que caminhei na gare de uma estação aguardando por um comboio que
tardava, sem pressa de partir, sem urgência para chegar a lado algum, apenas
esperando que o comboio viesse, parasse e me levasse, e, enquanto isso,
caminhando maquinalmente para um lado e para o outro só para não estar parado,
sem dar conta que era feliz por não me preocupar com o tempo que perdia,
porque, afinal, a solidão não é tempo perdido, dado que é tempo que passamos a
sós com a pessoa que conhecemos melhor. Às vezes puxava de mais um cigarro para
fazer um parágrafo nos meus pensamentos. Para abrir um parêntesis, para mudar
de página.
Um vulto composto por uma enorme mochila
com uma pessoa por baixo passa à frente da janela caminhando na gare. Como
estou de costas para a frente do comboio tenho que me virar para trás para
seguir o vulto e vê-lo a transformar-se numa jovem de cabelos cor de palha, à
medida que se vai desfazendo de tudo quanto trazia às costas e pendurado à
cinta. Senta-se no chão, na posição de Buda, e desdobra um mapa que fica a
estudar calmamente.
Poucas pessoas entenderão como pode
parecer absurda a paz no rosto de uma jovem sentada no chão, debruçada sobre um
mapa. Temo pela sua segurança, assim despreocupada sem arma nem proteção,
enquanto uma saudade incompreensível se apodera de mim como se aquele ato me
tivesse sido subtraído, como se fosse um papel que me coubesse desempenhar a
mim e que dele tivesse sido excluído. Acho que poucas pessoas entenderão que
podemos sentir falta de desdobrar um mapa sobre a G3 a servir de mesa, pousada
nas pernas cruzadas, e puxar da bússola azimutal, com o único propósito de
descobrirmos onde estamos, enquanto árvores centenárias construíam a nave
verdejante de uma catedral viva por cima de nós.
Quase me levanto para caminhar ao longo
da carruagem, só para não estar parado e fazer um parágrafo nos meus
pensamentos sem a ajuda do cigarro, enquanto o comboio não parte, mas o pé que
me dói não está lá para me apoiar, só a dor a desenhar a sua forma precisa;
agora apenas um formigueiro como se apenas tivesse estado dormente.
De vez em quando olho pela janela e, de
cada vez que olho, vejo a jovem cada vez mais recostada na mochila, prestes a
adormecer.
Na Estação Velha a esta hora há sempre
meia dúzia de pessoas a dormirem nos bancos. Pessoas, quero crer, que apenas
adormeceram de cansaço e que vão acordar serenamente para continuarem as suas
vidas. Um intervalo apenas para continuarem viagem. Pessoas que despertarão do
sono sem medo de que a voz que as chama, acima da linha de água da
inconsciência, as faça acordar para um pesadelo.
Pessoas para quem essa voz apenas
despertará nelas, dos abismos do subconsciente, desejo vivamente, a doce
memória da voz maternal a sobrepor-se aos ruídos do mundo ainda desconhecido,
quando dormiam o sono intra-uterino e primordial.
Muitas horas depois de ter parado aqui,
o comboio dá um grande estremeção, um enorme despertar metálico que faz estalar
toda a composição, depois começa lentamente a mover-se, e reparo que o dia já
nasceu e sinto que me vou afastando para sempre do que me ligava às histórias
das pessoas que ficaram na gare da Estação de Coimbra. Cada vez que um comboio
parte, ficam muitas histórias por contar. Fica também algo da nossa vida para
trás. Uma parte de mim também não embarcou, ficou sentada na gare da Estação de
Coimbra a consultar um mapa, uma última evocação de um tempo passado, dela já
nada se liga a mim, agora que desapareceu. Outra parte de mim ficou nesse
tempo, em África, dela trago apenas a sua forma nítida desenhada a dor. Nunca
levamos tudo quando partimos de viagem.
O comboio ganha velocidade e eu vou-me
afastando irreversivelmente da vida que vivi, e aproximo-me de quê, eu que
viajo de costas para o destino?
Voo de Origem:
Blog Cacimbo
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