segunda-feira, 6 de abril de 2009

VOO 895 UM SERÃO NA PROVÍNCIA.




Aniceto Carvalho
Esp.MMA 1952
Montijo



Companheiros da Linha da Frente,

Na sequência do Voo 899 “Os Nossos Precursores… Na Recém Criada FAP”, recebemos do nosso Companheiro Aniceto Carvalho mais um dos seus textos publicados no seu site Aviação Portuguesa .
O Aniceto Carvalho é um desses precursores, um dos primeiros Especialistas da recém criada FAP em 1952, quando a especialidade era tirada na então Escola Militar de Aeronáutica.

Partilhamos com a Linha da Frente o seu texto:

Um serão na província

Por certo pelo ambiente familiar acolhedor, os serões em casa do meu avô eram bastante frequentes e concorridos.
As visitas mais comuns eram a senhora Marquinhas, e a irmã, a senhora Delfina, que viviam quase em frente; o Ti Adelino do Alpendre, antigo combatente da Primeira Guerra, que morava a umas dezenas de metros aparecia de vez em quando; de tempos a tempos, de fora do lugar, apareciam lá por casa o Casimiro do Alqueve e o velho Cristo de Val de Vaz.
O velho Cristo era “filósofo”... Claro, depois de ter percorrido uma a uma todas as adegas de Couchel.
Pelo fim do serão, após uma notável tese sobre o esverdeado do vidro do copo, a cor da erva e o paladar do vinho, desandava estrada abaixo, pela quelha da Fonte das Tortas; com a mulher atrás, a rezar à Santa Bárbara, ele, à frente, a exortar o Deus dos trovões para lhe alumiar o caminho.
O Casimiro do Alqueve terminava o mesmo itinerário do “filósofo” com demolidoras aparições sobre lobisomens e almas do outro mundo; tão “autênticas”, que nem eu, na altura com cerca de dez anos, acreditava numa só palavra.
O Casimiro do Alqueve, assim chamado por viver numa povoação com aquele nome, nos arredores de Foz de Arouce, no concelho da Lousã, era um aldeão genuíno, alto e seco, não sei se mais ou menos destemido do que apregoava.
Uma noite medonha, de Inverno. O Casimiro do Alqueve meteu os pés ao caminho. Nada demais. Eram cerca de dez quilómetros de vento a uivar nas árvores, de trovoada e relâmpagos pelas encostas. Desceu a ladeira de Couchel, entrou na estrada da Beira, atravessou a Ponte Velha. Virou para a estrada de Foz de Arouce, apanhou o atalho, retomou o macadame no cimo do planalto da Pegada: um ermo longe de tudo, entre pinheiros, onde, em plena luz do dia, para além do cemitério, mais abaixo, não havia mais nada.
Um clarão na noite deixou na retina do caminhante a silhueta dos ciprestes, uma réstia de muro branco, a enorme copa do pinheiro manso defronte da porta do cemitério.
O Casimiro do Alqueve tinha de passar por ali: entre o pinhal e o muro da necrópole. Tinha ali passado vezes sem conta. Os vivos é que não eram de fiar, dos mortos não tinha medo.
Alta e mais negra que a noite, a cabeça à altura da ramada do pinheiro, uma sombra surgia das trevas, estava encostada ao muro do cemitério. O “homenzarrão” deu dois passos.
- O Senhor dá-me lume, por favor?
O Casimiro do Alqueve puxou do isqueiro; bateu a pederneira. Um pequeno lampejo de brasa despontou na ponta do pavio, durante um momento faiscou no meio da escuridão.
Soou um “muito obrigado”; a “visão” tinha desaparecido.
O Casimiro guardou o isqueiro; retomou o caminho.
Aquilo era uma enormidade do tamanho do mundo... mas alguém tinha lá estado para ver?
Disseram-me mais tarde que o Ti Adelino era gaseado.
Nada disso. O Ti Adelino simplesmente tinha vivido uma vida inteira em apenas três anos. Rebentava pelas costuras. Para um homem que precisava de deitar cá para fora as provações das trincheiras francesas, viver na aldeia escondida no interior da Beira, era, de facto, um fardo muito pesado.
A senhora Marquinhas, a comadre dos meus avós, e a irmã, a senhora Delfina, eram as duas praticamente da casa, estavam lá todos os dias; mas o Ti Adelino do Alpendre, como outros vizinhos do meu avô, era uma visita mais esporádica.
O Ti Adelino tinha aparecido logo depois da ceia, como se chamava ao jantar na minha terra; vinha passar um bocado, acabara por sentar em redor da lareira a tagarelar.
O Ti Adelino tinha estado na guerra... E falava francês, uma coisa extraordinária!... Ao que parecia - descobri depois – não havia já ninguém nas aldeias em redor que suportasse ouvir as histórias do velho combatente. Mas eu não sabia.
Eu não sabia que toda a gente entrava em pânico, a desviar a conversa, mal o Ti Adelino abria a boca à primeira palavra sobre o seu passado de combatente. Soava o alarme: toda a gente disparava em todas as direcções. Sem hipótese de relembrar os velhos tempos, o Ti Adelino baqueava.
Sentado no meu canto, eu ouvia; dava palpites… quando e se me deixavam.
Houve uma distracção nas fileiras: O antigo soldado da Primeira Grande Guerra tinha furado o cerco; eu acabava de apanhar no ar uma palavra de francês.
Foi um desassossego: A minha madrinha Dora atirou à pressa uma velha rivalidade de escola que eu sustentava com o José António Catrapeiro, o meu avô lembrou-se que “tinha achado um ninho de melro em Vale do Forno”; a senhora Marquinhas, em desespero, bateu com a mão na testa: “Tinha-se esquecido de dizer que a Lurdinhas – a sua neta, uma miúda da minha idade que toda gente achava à minha medida - estava quase a chegar para passar umas férias em Couchel.
Nada adiantou: Eu estava na guerra, a aprender francês; o Ti Adelino tinha o interlocutor porque esperava há anos... A noite era toda nossa.
Foi uma batalha: Bombardeamentos, combates corpo a corpo, sangue, esventramentos; depois, em francês, gritos de guerra, vozes de comando, ordens... Uma noite tenebrosa.
Em volta, o silêncio. Ninguém dizia uma palavra.
O barril de pólvora estava pronto a explodir. Radiante, o velho veterano começou a guardar a artilharia. Com um sorriso de orelha a orelha, retirou-se.
Eu enfrentei a turba sedenta de sangue. Foi o massacre. Não obstante os meus vigorosos protestos de inocência, pouco me faltou para acabar num naco de carne picada.

Aniceto Ferreira de Carvalho




Legenda: Helldiver SB2C-5 em voo de grupo (*)
Fotos: Aviação Militar de Aniceto Carvalho
http://aerodino.no.sapo.pt/ (direitos reservados)


Pois Companheiro Aniceto, os seus textos, que eu tanto aprecio seja nesta vertente menos “aeronáutica” seja na que retrata experiências na “nossa” FAP dos seus bons tempos, de certeza que também irão proporcionar bons momentos aos restantes companheiros da Linha da Frente, por isso cá esperamos por futuros contactos seus.
Saudações Especiais a todos os Companheiros e Visitantes da Tertúlia da Linha da Frente,

João Carlos Silva, MMA, Jaguares (FIAT G-91), 2ª/79

Notas da responsabilidade de JC:

(*) O Helldiver, primeira aeronave onde trabalhou o Aniceto Carvalho, foi das últimas aeronaves operacionais da extinta Aviação Naval, tendo transitado para o serviço da Força Aérea Portuguesa no Centro de Aviação Sacadura Cabral, posteriormente Base Aérea nº6.
Em relação à minha questão sobre o nome do avião, feita no voo anterior, o Aniceto Carvalho enviou-me a seguinte possível explicação que, devo dizer, corresponde ao que eu imaginava:
“O nome de Helldiver, presumo, deve ter sido porque o aparelho mergulhava mesmo a pique... autênticamente a 90º. graus. Devo dizer-lhe, por experiência pessoal, que se o Céu é o que se diz, mergulhar a pique no Helldiver não era bem a mesma coisa que passear nos jardins celestes de braço dado com o S. Pedro.
Talvez por isso.”

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