quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

GUERRA HUMANA.




105-Mensagem de Manuel Robocho
SargºMor Paraq.(Reserva)
Guiné 72/74 (BCP 12 Bissalanca)

Doutorado em Sociologia da Paz e Conflitos,pela
Universidade de Évora



CamaradasEntendeu o camarada Luís Graça individualizar, de um texto meu, a expressão “a guerra em que eu participei foi violenta, nas humana”. Deixei a frase “à solta”, sem a explicar, o que parece que se impõe agora, face às opiniões, entretanto surgidas.A questão “Guerra Humana” é “fracturante”, sem dúvida alguma. Contudo, este assunto não fica limitado aos combatentes da Guiné, é extensivo a todo o mundo e a todos os tempos. Sobre ele já foram escritos inúmeros tratados e se debruçaram pensadores, como Chris Argyris, Raymond Aron, T. B. Bottomore, Carl Von Clausewits, Lewis Coser, Gaston Courtois, Ortega Y Gasset, autor da célebre frase “eu sou eu e as minhas circunstâncias”, Samuel Huntington, Adriano Moreira, Sun Tsu e tantos outros, sem que chegassem a uma posição unânime. Estes ilustres pensadores não conseguiram uma definição que a todos satisfizesse ou enquadrasse todas as situações que uma guerra provoca. Também não vamos nós consegui-lo, seguramente.Não me querendo, tão-pouco, assemelhar com qualquer destes pensadores, tenho a minha própria definição sobre a matéria.Guerra violenta:Corresponde ao que acontece durante os combates, que podem ser mais ou menos frequentes; ter uma maior ou menor duração; as baixas podem ser maiores ou menores; cada combate de per si pode conter uma maior ou menor perigosidade, consoante o número de homens envolvidos, armamento utilizado e distância entre os combatentes, entre outros aspectos (não pretendo escrever nenhum tratado). No que às minas se refere, dou-lhe total equivalência a um combate.Neste sentido há duas considerações a seguir: uma diz respeito à guerra que cada um de nós enfrentou, que corresponde à componente individual (e eu falei da minha); outra consideração diz respeito à resultante de todas as componentes individuais, a qual define a guerra que travamos.Guerra humana:Por guerra humana entendo a maneira como são tratados, pelos vencedores, os inimigos feridos ou aprisionados e a própria população das zonas ocupadas militarmente por forças alheias aos territórios, onde as guerras se desenvolvem.
Um pouco para demonstrar que o meu pensamento não é de hoje, nem foi escrito levianamente, transcrevo, na íntegra, a página 346 da minha tese de doutoramento:“A 1 de Maio desse ano de 1973, no decurso da operação “Tabica Texuga”, (relembro que tenho os relatórios das operações em meu poder) em Caboxanque, empenhando o 2.º e 3.º Pelotões (da CCP 123), Sousa Bernardes revelou mais uma vez a sua capacidade criativa, quando detectou, atravessando uma bolanha, um grupo de 10 Guerrilheiros e, numa inteligente manobra táctica, surpreendeu-os no seu aquartelamento. Do contacto resultou a morte de três dos Guerrilheiros, vários feridos e a captura de diverso material e armamento.Mulheres e crianças que estavam misturadas com os Guerrilheiros fugiram dos combates para a bolanha. Os Pára-Quedistas, em mais uma manobra de rigor, preferiram deixar fugir alguns Guerrilheiros a matar inocentes e nenhuma mulher ou criança foi atingida.Uma idosa doente, que não conseguiu fugir, foi tratada pelo Enfermeiro Aguiar e foi deixada no seu tabancal. As nossas tropas não sofreram qualquer consequência.Se entre o grupo dos Sargentos havia um que já se distinguira e diferenciava dos restantes, Sousa Bernardes, com mais esta atitude, mostrava que os Oficiais também se diferenciavam pela sua criatividade. Neste ponto, não se pode deixar de fazer uma referência. Houve, durante a Guerra, quem conseguisse grandes êxitos militares, mas à custa de consideráveis baixas para as nossas tropas, a esses não os apelido de criativos, mas de aventureiros que arriscam a vida dos seus homens, mas sem consciência do que estão fazendo. Sousa Bernardes não foi assim, arriscou com prudência, cautela e autoridade, concebendo criativamente as manobras, pelo que pode afirmar que as estrelas que usa são «suas», ninguém lhas deu.No relatório do Comando sobre esta operação consta a seguinte passagem: “por informações dadas pela população a identificação de 2 dos mortos é a seguinte: Ancanha, Comandante de bigrupo, natural de Fabrate, e Bunhé, natural de Flaque Injã”, ambos reputados combatentes nas hostes inimigas. Sousa Bernardes não se tinha enfrentado com milícia vulgar, o que deixa evidente que a qualificação do combatente depende do valor humano e da experiência. Os conhecimentos adquiridos na Academia Militar eram iguais aos de todos os outros Oficiais de carreira e nenhum, dos que me comandaram e fui comandado por 6 Capitães, 4 na Guiné e 2 em Angola, era como ele.
Esta mesma opinião teve o Comandante do Batalhão, quando escreveu no seu relatório acerca de Sousa Bernardes: “...A sua posição na primeira linha incutiu confiança e galvanizou os seus subordinados...”. É aqui que os combatentes se diferenciam: no fazer, porque no mandar são todos iguais. Recorrendo a uma afirmação que circula nos meios militares de uma frase atribuída a Napoleão: “os exércitos ou se puxam ou se empurram”, julgo que se puxam pela competência, pelo exemplo e pela liderança, e se empurram pela autoridade repressiva.”Nesta 346.ª página, que foi escrita há anos e pode ser consultada na dezena de locais onde as teses são disponibilizadas, observam-se as duas situações: a guerra violenta reflectida no combate que se travou entre um bigrupo de Pára-Quedistas e um bigrupo de forças do PAIGC; e a guerra humana reflectida no risco que se correu, ao deixar-se fugir guerrilheiros para não atingir nem mulheres nem crianças e, mesmo depois, ao tratar-se a idosa doente. Diferentemente seria se o ataque tivesse sido indiscriminado e se tivessem matado as mulheres, as crianças e a idosa. Neste caso estaríamos perante uma guerra desumana.Admito que nem todos vejamos as diferenças, e que haja quem considere que “guerra é guerra”, mas também penso que tenho o direito de pensar e descrever a guerra em que eu participei. Que foi esta. No campo do individual, cada um de nós fala da guerra em que participou.A este propósito recebi uma carta do Padre Pinho, Capelão dos Pára-Quedistas, durante o tempo da Guerra, na qual me manifesta a sua concordância pela abordagem que eu faço à guerra humana, referindo-me que os Pára-Quedistas tinham efectivamente esta doutrina.Um abraçoManuel Rebocho