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Giselda Pessoa
O Zé do Guidaje
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Lisboa
Lisboa
O Zé do Guidaje
Há meia dúzia de anos tive a
oportunidade de ser contactada pelo Zé, um velho conhecido da Guiné.
Tudo começou com um artigo publicado
num jornal sobre um ex-piloto da Força Aérea na Guiné, o então Ten. Miguel
Pessoa, artigo esse em que era referido o facto de ele ter casado com uma
ex-enfermeira paraquedista, Giselda - eu. Contava-se também a minha ida
atribulada ao Guidage no dia em que outros aviões foram abatidos pelos mísseis
Strela. Com esses dados em mão o Zé iniciou a busca de um contacto telefónico
e, tendo-o conseguido, foi-lhe fácil chegar à fala comigo.
Soube assim que o Zé era um ex-militar
que tinha cumprido uma comissão de serviço na Guiné, mais concretamente no
Guidage, de onde tinha sido evacuado em 6 de Abril de 1973, e que procurava
confirmar se tinha sido eu a enfermeira que tinha feito essa evacuação.
6 de Abril é uma data que está
fortemente marcada na minha memória e não preciso de vasculhar papéis para
saber o que sucedeu nesse dia. Dois aviões foram abatidos, um terceiro
desapareceu, perderam-se três pilotos e um enfermeiro da Força Aérea, dois
oficiais e um sargento do Exército, um milícia local do Guidage. E o avião em
que eu seguia para uma evacuação no Guidage quase foi abatido.
Tudo isto já tem sido referido em
vários sítios, até neste blogue. O que não se sabe, e este telefonema veio
relembrá-lo, é que o dia 6 de Abril começou para mim com uma deslocação ao
aquartelamento de Guidage logo às primeiras horas da manhã, a fim de evacuar um
militar do Exército gravemente ferido. E o mais curioso - e tocante - é que
esse militar, descobria-o agora, era o Zé, o homem que estava ao telefone.
Naturalmente, tivemos uma interessante
conversa, embora limitada pelo próprio meio utilizado. Mas ficou-me a ideia de
poder vir a falar pessoalmente com ele, no futuro. Essa oportunidade surgiu há
pouco mais de quatro anos, quando fui contactada por um responsável por uma
produtora de trabalhos para o Canal História. Pretendia essa produtora fazer
uma reportagem sobre as enfermeiras paraquedistas em Portugal, pedindo o
contributo das ex-enfermeiras para prestarem depoimentos sobre as suas
experiências pessoais.
Para além de me disponibilizar para
essa entrevista, lembrei-me de propor igualmente que o Zé fosse convidado a
participar nessas gravações, pois certamente o seu testemunho seria
interessante. Dado que concordaram, acabei por ter a oportunidade de me
encontrar com o Zé em Lisboa, no decorrer dessas gravações.
O que eu me lembro, o que ele me disse
e o que ficou gravado podem resumir-se, de uma forma simples, no seguinte:
O Zé encontrava-se a trabalhar na
construção de um telhado de um edifício, no exterior, quando repentinamente o
quartel é alvejado pelo PAIGC. Estando a descoberto naquele momento, tenta
procurar um abrigo, mas quando ali chega verifica que o abrigo está cheio,
principalmente com gente da população. Não tendo possibilidade de se proteger
completamente, fica à entrada, meio a descoberto. Ouve de repente uma explosão
muito próxima, de uma granada ou morteiro, e nesse instante sente um impacto no corpo. Leva as mãos ao
corpo e retira-as cheias de sangue.
Após um período de semi-inconsciência,
lembra-se de ter aberto os olhos e ver uma senhora com uma T-shirt branca e
calças de camuflado, não sabendo se tinha morrido e se era o seu anjo da guarda
que ali estava. Recorda ainda a evacuação no DO-27 para a BA12 e o transporte
para o Hospital. Refere-me ainda ter a plena consciência de que não teria
sobrevivido se não tivesse sido evacuado naquele momento.
Afastando a hipótese do anjo da
guarda, devo concordar com ele no restante. O Zé teve a oportunidade de utilizar
o único avião que nesse dia conseguiu ter êxito na evacuação de feridos do
Guidage. A gravidade do seu estado não aconselhava de modo nenhum a sua
permanência no aquartelamento. O avião em que pouco tempo depois regressei ao
local acabou por ter de aterrar de emergência em Bigene, depois de alvejado por
um Strela, e não poderia tê-lo evacuado. O avião que substituiu este na missão,
embora tendo aterrado no Guidage e descolado com um ferido a bordo, desapareceu
após a descolagem, nunca mais se sabendo nada do avião e das pessoas que lá
seguiam. Se o Zé tivesse seguido também nesse avião seria hoje mais uma baixa a
lamentar.
O Zé deveu a sua vida em grande parte
à sorte, embora possa ter tido uma pequena ajuda de alguém que, não sendo anjo
da guarda, estava ali precisamente para o apoiar.
Giselda Pessoa