sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O DIA EM QUE NASCI PELA SEGUNDA VEZ...



420-Américo Silva
Esp.Marme 1ª/69 Guiné


Angola



O DIA EM QUE NASCI PELA SEGUNDA VEZ...
( acidente com o T6G Harvard )


Nova Lamego,13 de Fevereiro de 1971.

Era Sábado, dia igual a todos os outros da semana.
Na véspera tínhamos partido da BA12-Bissalanca, rumo a Nova Lamego (Gabu), onde a parelha de T6G Harvard aterrou com normalidade, tal como decorreu todo o voo.
Ali pernoitámos, nos alojamentos destinados à Força Aérea, junto ao quartel do exército, numa antiga moradia mesmo na rua principal da povoação.
A equipa era constituída pelos dois pilotos e os respectivos mecânicos, um MMA no caso o camarada Almada de seu nome, madeirense de nascimento e eu, MAEQ, Américo, natural do Montijo.
Tudo decorria como habitual, naquela povoação que eu tão bem conhecia e gostava, ao ponto de fazer lá “comissões” prolongadas, pois prorrogava o tempo substituindo os camaradas que deveriam seguir para lá, por escala.





Instalações da Força Aérea em Nova Lamego




Nunca gostei de “rotinas”, talvez por isso a minha preferência em me manter por lá, em detrimento da vida segura e calma da Base.
Ali, em Nova Lamego, havia uma “mística” diferente. Era o contacto directo com o povo. Sentir o seu cheiro e o da terra.
Tudo ali era puro, informal e não protocolar.
É espantoso como em trinta e sete anos depois, recordo tudo como se fosse hoje. Os jantares no restaurante do senhor libanês, velho simpático, prestável e sempre sorridente, de seu nome Anis Bourafé, a quem o pessoal da F.A.P. muitas vezes lhe pregou o “calote” quando abandonavam Nova Lamego sem liquidar as contas das despesas “fiadas” por ele, apenas por amizade e boa fé.
A manhã anunciava um dia quente e solarengo.
Depois de tomarmos o pequeno almoço, o Jeep do exército levou-nos até à pista onde as aeronaves estavam estacionadas.
Os preparativos foram feitos. O Almada ocupando-se das suas tarefas e eu das minhas, pois no regresso iríamos fazer uma visita de surpresa, lá para os lados do Saltinho...
Os “T6” estavam equipados com ninhos de lança-roquetes e havia que os municiar, enquanto os dois pilotos por seu turno faziam as suas inspecções exteriores e de seguida os seus “check-list”, já instalados “amarrados” no interior dos aparelhos.
Com tudo pronto e os motores em marcha, lá seguimos para a pista, após o que passados curtos minutos já rolávamos em plena velocidade na pista e nos erguíamos no ar.
Com uma passagem “à vertical” da povoação, os “T6” já em parelha, apontaram rumo ao objectivo.
A “função” decorreu como devia e após duas passagens com as respectivas picadas, novo rumo foi tomado, já mais “leves”, desta vez para Bissalanca, com a satisfação do dever cumprido.
A viagem deveria ter a duração de mais cerca de 30 minutos até aterrarmos, quando, passados que são cerca de 15 minutos, subitamente, o motor do “T6” em que voo, começa a falhar, vendo-se um rasto de fumo vindo do lado do escape, ao mesmo tempo que perdia de imediato altitude.
O piloto, Furriel Mil. de nome Brandão (se não me engano...???), começa a informar a Base da ocorrência, enquanto eu, ainda a pensar no que acontecia e qual o procedimento a tomar para tal situação, começo a ouvir um sinal sonoro intenso, que por simples ignorância, entendi ser o aviso que antecedia a explosão da aeronave.
Aí num ápice, que não durou mais que um par de segundos, desamarrei os suspensórios e o cinto de segurança, abri a canopy e preparava-me para saltar, com o firme pensamento de que, pelo menos não havia de morrer da explosão...
Afinal o aviso sonoro, soube-o mais tarde, era accionado automáticamente sempre que o aparelho se fazia à aterragem (em baixa rotação) e o piloto se esquecia de baixar o trem de aterragem.
Como o “T6” não estava preparado para destingir uma pane duma aterragem, o alarme suou...
Felizmente o piloto, vendo-me já com a cabeça meio de fora, avisou-me para sentar novamente, pois iria efectuar uma aterragem sem rodas, a chamada “papada”, uma vez que acabávamos de sobrevoar uma densa área de arvoredo e havíamos entrado numa grande bolanha, completamente plana e apenas com capim.
Obedeci rápido e embora já não tivesse tempo para me “amarrar” novamente, finquei os pés na estrutura que fixava o painel frontal, segurando-me com a máxima força, agarrando-me ao referido painel de instrumentos, enquanto pensava: - puxa, logo teria que acontecer a mim.
Naqueles breves segundos que antecederam o primeiro embate no solo, o meu pensamento, com uma velocidade supersónica, fez a retrospectiva de toda a minha vida até aquele momento.
Tudo que de bom e de mau me tinha acontecido, vindo igualmente à lembrança, os meus familiares.
Entretanto, o aparelho descia vertiginosamente ao mesmo tempo que descrevia uma curva acentuada enquanto se aproximava do solo, mantendo o rasto de fumo, como só nos filmes se vê, quando os aviões são atingidos e se despenham.
O primeiro embate, foi feito com violência, projectando o “T6” para a frente, deslizando, sem contudo ter capotado. Ao segundo e terceiro “pulos” percebeu-se que perdia velocidade e amplitude. Lá para o quarto ou quinto salto, de repente fez um “pião”, rodando 180º e parando, no meio de uma nuvem de poeira e fumo.
Segundo me disse o Almada mais tarde, que entretanto observava do seu “T6”, o desenrolar da aterragem forçada, nunca antes tinha visto alguém tão rápido saltar fora do avião e correr, enquanto se afastava do mesmo.
Esse alguém era eu, que tão rápido quanto pude e depois de abrir os olhos e perceber que ainda estava vivo..., uma vez que já estava liberto do cinto da cadeira, numa fracção de segundo, saltei, tendo caído de pé no meio do capim e rápidamente iniciei a corrida, algo atrapalhada pois o paraquedas, sendo de assento, batia-me nas pernas, dificultando as passadas. Mesmo assim, acho que naquele momento fiz os mínimos para ir aos 100 metros nos Jogos Olímpicos...
Só passados alguns momentos quer pareceram uma eternidade, o piloto saiu, tendo-o chamado para junto de mim.
Afastados uns bons metros do aparelho que jazia inerte no solo, com o hélice, qual bigode mexicano, mas sem mais consequências, ensaiámos o acender dos cigarros para acalmar os ânimos, mas os nervos eram tantos e o tremor de tal ordem, que as nossas mãos não conseguiam acertar e tocar um cigarro no outro...
Tínhamos acabado de participar num acidente que podia ser trágico e fatal para ambos, mas cujo desfecho fez-se, felizmente, apenas com prejuízos materiais.
Com a aflição e a atrapalhação, o piloto tinha-se esquecido de libertar os ninhos lança-roquetes, das asas, os quais fizeram de “ski”, tendo um deles se arrancado no percurso dos saltos, motivo pelo qual o “T6” fez o tal pião sobre o outro que permaneceu fixado à asa.
Até neste pormenor, que nos poderia ter sido igualmente fatal, tivemos a sorte pelo nosso lado.
Fiquei com a sensação de ter nascido novamente naquele dia. A partir daquele dia 13, o respectivo número é para mim especial e de sorte.
Ao fim de uma hora que me pareceu quase um dia, fomos recuperados por um Alouette, embora tivesse havido sempre a protecção do outro “T6”, que nunca nos abandonou até à chegada dos paraquedistas, vindos em nosso auxílio.
Quando finalmente aterrámos na Base, foi uma festa.
Lembro-me de estar uma “comitiva de recepção” à minha espera e alguém teve a lembrança de me oferecer um copo de água, cheio de whisky, que bebi com uma satisfação nunca antes sentida.
A aeronave acidentada foi no dia seguinte recuperada.
O motivo da ocorrência foi que o cárter do motor, partiu (rachou), perdendo óleo, que por sua vez e devido à deslocação do avião, passava-se para o escape. Este, estando em brasa, queimava-se deixando aquele rasto de fumo.
A área onde ocorreu o acidente, chama-se Rossum, fica entre a estrada de Bissau para Mansoa e o rio Geba, a sensivelmente meio caminho deste trajecto, frente a um posto do exército, existente na altura nessa mesma estrada, cujos militares observaram todo o desenrolar do acontecimento.
A estória da recuperação da aeronave, da qual também tomei parte no dia seguinte, fica para outra altura...

Américo Silva



VB: Que saudades me deixam alguns dias vividos em Nova Lamego (Gabu)!