Visto daqui o céu parece uma parede mal pintada em tons de ocre e tijolo com umas pinceladas de vermelho sem qualquer critério.
Por de Sol em Mueda.
Mudo de posição para tirar um diapositivo a este pôr-do-sol inverosímil.
Apanho parte da coluna que segue para Omar, onde o Lourenço segue para a morte certa.
Neste momento, com este exercício diacrónico da imaginação podemos segui-lo, mas na verdade o soldado Lourenço morreu sem ninguém dar por isso.
A guerra continuou ainda durante muito tempo e sempre indiferente aos mortos.
Quase sempre ignorados, tantas vezes negados.
Que má consciência pátria esta que se envergonha dos seus mortos!
Nesta sociedade, consumidora de imagens em vez de valores, ou pelo menos de crenças, como dantes, todos criámos o mito do espectáculo.
No espectáculo a personagem da cena mais miseravelmente solitária é sempre, na sua relativa medida, uma celebridade.
Criou-se o mito do eterno actor, deixámos de fazer questão que a ficção se aproxime do real e passámos a colar a própria vida à ficção.
Assim, o que não é espectáculo é ignorado.
A personagem que o actor interpreta nunca está verdadeiramente só, goza com a nossa cumplicidade, sofre com a nossa solidariedade e a sua experiência tem sempre um sentido, um critério, uma estética; mas tal como o turista que procurando a paisagem do postal ilustrado, nunca a encontrará, pois a natureza não faz grandes planos, enquadramentos, não joga com a profundidade de campo; também a vida é completamente alheia ao sentido que lhe queiram dar e o verdadeiro sofrimento não tem estética nenhuma, é obsceno.
E a morte, a mais íntima das experiências humanas é por isso mesmo a mais solitária, mesmo quando a mão do moribundo se agarra in extremis à do ente mais querido.
E não há morte mais miseravelmente solitária que a morte no campo de batalha.
Quando se ouviu a primeira rajada, o Lourenço saltou do Unimog sobre os dois pés, as pernas flectidas para amortecer o impacto com o chão, depois ajoelhou e, num movimento perfeito, deixou-se cair para a frente sobre os cotovelos, ao mesmo tempo que a coronha da G3 encostava ao ombro.
Sentiu a perfeição da sua "queda-na-máscara" e achou que merecera ser filmado para mais tarde mostrar aos amigos no café do Sr. Aníbal e, quando já velho, aos netos, para que não viessem a dizer que o avô inventava aquelas histórias todas.
Mas ninguém viu, ninguém acelerou as pulsações a par com ele, não se ouviu aquela música que enfatiza as cenas de perigo e nos faz enterrar na cadeira.
Foi uma "queda-na-máscara" perfeita para coisa nenhuma.
Nem o que sentiu durante a emboscada, nem o que pensou, nem as imagens que lhe passaram pela memória, foram testemunhados por ninguém.
Tudo inútil, tudo em vão.E quando o estilhaço do morteiro – depois de passar pelo capim, por entre um acajueiro e um embondeiro, por entre duas Berliets, depois de assobiar junto às cabeças dos seus camaradas – veio mergulhar na sua fronte, deixando apenas uma pequena mancha negra onde entrou, para depois atravessar o cérebro lado a lado, ficando a escassos milímetros de sair pela nuca, não se fez o silêncio do anti-climax, em que a música em crescendo pára repentinamente para dignificar a cena e nos permitir um, ainda que breve, momento de luto.As Kalashnikovs ladram no capim como hienas famintas de sangue e os projécteis batem na chapa da Berliet por todo o lado.
O outro furriel que ia sentado ao meu lado saltou para o chão sem demora, mas fez-me perder a oportunidade de saltar a tempo.
Agora é muito perigoso saltar porque os soldados disparam debaixo da Berliet e eu cair-lhes-ia à frente.
Ajusto o corpo, de perfil, à coluna que serve de batente à porta da cabine, pondo o queixo sobre o ombro para oferecer a menor silhueta possível.
A coluna não me cobre a cara toda e eu vejo a uns vinte metros, bem à minha frente um embondeiro em cuja copa um ramo parece agitado pelo vento.
É o bafo da morte que sopra de uma Kalash na minha direcção.
Nem medo nem ódio, apenas um momento de regressão ao primitivo jogo entre o predador e a presa, apenas uma mancha sem nome nem rosto na confluência da alça e da mira.
Um dia quando me lembrar disto irei olhar para o lado e o cacimbo de África irá embaciar-me a paisagem como se o pranto de todas as vítimas desta guerra me acusassem por tentar ser feliz. Agora porém sinto qualquer coisa parecida com prazer.
Nem medo nem ódio, nem culpa nem remorso, o vento parou apenas no ramo do embondeiro.
Depois de vinte minutos a disparar contra o medo levantámo-nos todos e o Lourenço ficou deitado a apontar a G3 para o capim.
Deram-lhe um pontapé – Ficas aí? e ele tombou de olhos virados para o céu.
Ficámos um minuto a olhar para ele antes de aceitarmos que era o nosso primeiro morto.
Um bocadinho de massa encefálica a sair-lhe por entre o cabelo.
Não tivemos tempo de chorar a sua morte.
Lá na terra as pessoas não se juntaram em pequenos grupos a contarem a novidade.
Na sua casa o espaço não aumentou por falta dele, nem os objectos passaram a fazer um ruído maior por andarem as pessoas em silêncio.
O luto virá mais tarde, depois do grito, do uivo de dor da mãe, ainda antes de ouvir as palavras da vizinha.
As mães não precisam de ouvir as notícias da morte dos filhos que andam na guerra, percebem logo.
A vizinha com os olhos dilatados de pânico a procurá-la num despropósito de atenções e ternura e ela a sentir o estilhaço do morteiro a cortar-lhe a carne, o coração, todo o seu ser.
Transporte de ferido.
Agora, o olhar perdido virado para o céu não vê o Alouette III que vem a padejar, esfarrapando o cacimbo e pousando como uma libélula gigante na clareira que os soldados abriram a golpes de catana.
Ele vai embora na barriga da libélula e nós ficamos cá em baixo pequeninos e insignificantes como ácaros na alcatifa imensa da selva.
E cerzidos de medo, o medo de todos os dias, tão familiar como o odor corporal que deixou de nos incomodar com o tempo.
Um medo vago e indefinido.
A náusea de permanecermos vivos.
Não tivemos tempo de chorar a sua morte.
Manuel Bastos
Cacimbo