Giselda Antunes Pessoa
2ºSarg.Enfª.Paraqª Guiné
Lisboa
NO FIM DO MUNDO
Caro Victor,tinhas sugerido um texto meu,cá vai.
Quando me sugeriram que escrevesse um texto para o blogue, onde relatasse algumas das histórias que vivi durante o meu tempo como enfermeira paraquedista, lembrei-me de folhear um dos volumes de "A Guerra de África", de José Freire Antunes, em que há um capítulo dedicado às enfermeiras paraquedistas.
Nesse capítulo aparecem depoimentos de várias enfermeiras, sendo eu uma delas.Revendo o que ali está escrito, percebo que posso perfeitamente usar algumas das histórias que ali relatei; primeiro, porque muita gente desconhece aquela obra; segundo, porque posso falar do mesmo, dando-lhe agora uma melhor arrumação do que aquela que teve à época. Na verdade aquela obra é mais uma manta de retalhos, pois baseou-se na passagem ao papel de uma série de entrevistas gravadas por diversos assistentes do escritor/historiador, não tendo havido mais tarde qualquer tentativa de se melhorar os textos que daí resultaram.
Ora sabemos todos que não se escreve da mesma maneira que se fala e o que dizemos num repente pode ser melhorado se tivermos possibilidade de reler o que está escrito e dar-lhe uma melhor apresentação.
Posto isto, gostaria talvez de começar por temas que me marcaram na minha vida de militar, a camaradagem e a solidariedade, que sendo algo característico da vida militar, parecem ter tido ainda mais relevo no território da Guiné. Se é habitual haver um grande companheirismo entre os paraquedistas, tive a oportunidade de ver exemplos desse companheirismo junto de outros grupos na Força Aérea, fossem pilotos ou mecânicos da BA12.
Também nas minhas deambulações pela Guiné (em 28 meses de comissão(*) tive a possibilidade de chegar aos sítios mais invulgares, em que afinal muitos tiveram que viver) pude testemunhar as manifestações de camaradagem e solidariedade que sempre mostraram ter para com os tripulantes dos DO-27 e AL-III que por ali passavam e particularmente para com a enfermeira que os acompanhava.Este episódio não faz afinal parte daquele livro, mas sendo algo que me tocou profundamente, deixo-o aqui.
No decorrer de uma evacuação que tinha como objectivo um aquartelamento no nordeste da Guiné, o helicóptero aterrou na placa, onde embarcou o evacuado. No decorrer dessa operação, aproximou-se do AL-III um Furriel daquela unidade, o qual se me dirigiu com um pedido fora do vulgar. Explicou-me que com ele estava naquele quartel a sua mulher, sendo ela a única branca que ali vivia; e que, não vendo nenhuma branca há já muitos meses, certamente apreciaria falar comigo por uns momentos. Expliquei-lhe que o facto de transportarmos um ferido e o pouco combustível de que dispunhamos não permitia prolongar a nossa estadia ali. Mesmo assim, ele montou a sua motoreta e foi buscar a mulher, para a levar junto de nós.
A espera prolongou-se por mais tempo do que aquele de que dispúnhamos, o que levou o piloto a decidir-se por descolar, com grande pena minha. Já no ar, tive a possibilidade de ver aproximar-se da placa a motoreta com o Furriel, trazendo a mulher à boleia. Ali chegados, apenas teve ela tempo para nos acenar enquanto o AL-III rodava em direcção a Bissau. Senti naquele momento um desgosto enorme por não ter podido proporcionar àquela mulher um momento de carinho e de solidariedade, de que ela tanto necessitaria; e imagino a sua frustação quando não lhe foi possível partilhar de uns momentos de proximidade com alguém que lhe recordaria outras companhias e outros ambientes deixados há muito para trás.
Giselda Pessoa
(*) As comissões das enfermeiras paraquedistas variavam entre seis meses e um ano, o que provocava uma constante rotação do nosso pessoal. Vá-se lá saber porquê, fui optando por prolongar a minha estadia na Guiné, muito provavelmente devido ao óptimo ambiente que ali se vivia e também por me sentir realizada no trabalho que ali desenvolvia, numa atmosfera que não deixava esconder a guerra que nos rodeava.
VB.Companheiros, sem menosprezar a sensibilidade ou sentimentos de quem quer que seja, esta mensagem era uma das que eu mais desejava receber.
Na realidade nutro um carinho muito especial por estas SENHORAS, verdadeiras MULHERES DA GUERRA COLONIAL, que tão ignoradas têm sido porque quem de direito.
Apraz-me aqui ressalvar o nome do Gen. Taveira Martins quando (**)CEMFA.
Estas mulheres de uma humildade sem limites, que pertenciam aos Paraquedistas, compunham um efectivo de pessoal reduzidíssimo(43),na Guiné (5) na plenitude da sua juventude, deitaram ao abandono o perigo que corria a sua própria vida, em prol da vida de milhares de militares que na angustia do sofrimento de uma guerra para onde também foram empurrados, tantas vezes gritaram pela sua presença para continuarem a fazer parte do mundo dos vivos .Para uns assim foi, para outros o melhor que conseguiram foi uma incapacidade física para toda a vida, para outros…ficaram-lhes as lágrimas nos olhos quando o seu esforço era inglório.
Recordo aqui as evacuações de Helicóptero, feitas à zona, em que tinham que saltar da aeronave, muitas vezes ao som do tiroteio inimigo, em busca daquele cujo a sua vida estava em perigo.
Mas a sua missão não se ficava por aqui, recordo também a sua requisição pela população civil, chegando até a assistir a um parto a bordo de uma DO-27! Esta situação foi presenciada por mim que fazia parte da tripulação como mecânico.
Infelizmente o luto também se abateu sobre elas, e nós, naquele fatídico dia 10.02.1973 ao se deslocar para uma aeronave DO-27 que a esperava na placa de estacionamento da base para partir para uma prestar auxilio a alguém que lhe o exigia, perdeu a sua própria vida ceifada pelo hélice da referida aeronave.
Dei o título a esta mensagem de “Chegou a mensagem por mim mais desejada”por duas razões:
1- Porque, embora outras companheiras Enfºs já tivessem entrado no Blog, foi a primeira vez que tivemos a descrição de um acontecimento no teatro da guerra.
2- Porque foi a Giselda!
Compartilhei com ela algumas horas de voo ao efectuar evacuações e, tal como ela o diz, apesar das nossas idades e de tudo o que nos rodeava naquela longínqua terra africana respeito e a camaradagem mutua foi sempre factor preponderante no nosso dia/dia.
Recordo a alegria que ela nos sabia transmitir fazendo, muitas vezes, que o momento menos bom que se estava a viver fosse ultrapassado dando lugar à boa disposição.
3- Porque quis o destino que fosse ela a recuperar um HOMEM, quando do acidente que o vitimou ao ser atingido pelo Strella, por quem sempre mantive uma grande admiração pela sua postura, quer como superior ou companheiro que viria a ser o seu marido, Miguel Pessoa.
Por último gostaria que alguém, com conhecimentos para tal, me respondesse duas questões:
1-Alguma Enfª Paraqª possua alguma condecoração tipo Torre Espada, Serviços Distintos Com Palma, etc. etc…,pelos serviços prestados ou o caso da Enfª Celeste, por morrer em socorro de um militar ferido no TO?
2-Algma Enfª.Paraqª atingiu a patente mais alta que Capitão?
Agradecendo o devido esclarecimento para que a minha dúvida seja desfeita, despeço-me com um orgulho muito grande de ter tido estas mulheres comos COMPANHEIRAS NA GUERRA!
(**) Chefe do Estado Maior da Força Aérea