Miguel Pessoa
Cor. Pilav. Refº. Guiné
Lisboa
ENCONTROS IMPREVISTOS
Numa guerra que se pautou muitas vezes por actos bélicos de grande intensidade nos confrontos que opuseram as nossas tropas aos elementos do PAIGC, testemunhados nos relatos publicados neste blog, parecia estranha a existência em alguns locais da Guiné de um ambiente de "paz podre" ou, talvez melhor, "paz consentida", em que os dois beligerantes pareciam travar os seus instintos guerreiros, antes permitindo aos que ali viviam uma existência relativamente pacífica, em que a guerra parecia por vezes passar ao lado.
A Força Aérea habituou-se a evitar ataques em zonas consideradas "tabus" (por exemplo, o Como), não sendo mesmo autorizadas acções contra essas zonas.
Do lado contrário, podemos incluir a capital da província, Bissau, em que, salvo um ou outro caso, se vivia um ambiente de uma certa tranquilidade e serenidade, que contrastava com a atmosfera tensa e inquieta existente na maioria dos nossos aquartelamentos, e com o risco que representavam as deslocações entre eles.
Essa calma podia ser transportada até à Base Aérea nº12, em Bissalanca, que nos dois últimos anos da nossa presença no território nunca sofreu qualquer ataque, bem como ao percurso entre a Base e a cidade, que se considerava relativamente seguro.
Nunca consegui perceber como, num conflito que vivia essencialmente de emboscadas e ataques imprevistos às nossas forças, nunca se lembrou o IN de atacar a carrinha VW (vulgo TP9) que diariamente transportava as tripulações (pilotos e enfermeiras pára-quedistas) entre a Base e Bissau.
Assim, era regra ver a carrinha chegar à BA12, vinda de Bissau, pelas 06H00, transportando o pessoal de alerta, regressando a Bissau e entrando novamente na Base às 08H00 com os tripulantes que iniciavam a actividade normal.
À tarde, pelas 18H00, repetia-se a rotina da manhã com transporte dos tripulantes que moravam em Bissau, podendo a carrinha fazer ainda mais um transporte do pessoal que, por motivos de serviço, chegava mais tarde das suas missões.
Com a facilidade em escolher o timing certo, torna-se claro que havia grandes possibilidades de êxito de uma acção do IN contra esse transporte: uma simples bazookada poderia diminuir num repente a operacionalidade da Força Aérea no território em 15 ou 20% da sua capacidade, acrescido dos efeitos psicológicos negativos que daí adviriam.
O facto é que essa hipótese nunca se concretizou, embora às vezes comentássemos essa possibilidade.
Um dia em que uma evacuação se prolongou até mais tarde, houve necessidade de se efectuar um transporte extra da enfermeira envolvida nessa missão.
Passado um tempo razoável, começou a haver alguma preocupação sobre o que teria acontecido ao transporte, pois nem a enfermeira Giselda tinha chegado a Bissau, nem o condutor tinha regressado ainda com a carrinha à Base.
Cor. Pilav. Refº. Guiné
Lisboa
ENCONTROS IMPREVISTOS
Numa guerra que se pautou muitas vezes por actos bélicos de grande intensidade nos confrontos que opuseram as nossas tropas aos elementos do PAIGC, testemunhados nos relatos publicados neste blog, parecia estranha a existência em alguns locais da Guiné de um ambiente de "paz podre" ou, talvez melhor, "paz consentida", em que os dois beligerantes pareciam travar os seus instintos guerreiros, antes permitindo aos que ali viviam uma existência relativamente pacífica, em que a guerra parecia por vezes passar ao lado.
A Força Aérea habituou-se a evitar ataques em zonas consideradas "tabus" (por exemplo, o Como), não sendo mesmo autorizadas acções contra essas zonas.
Do lado contrário, podemos incluir a capital da província, Bissau, em que, salvo um ou outro caso, se vivia um ambiente de uma certa tranquilidade e serenidade, que contrastava com a atmosfera tensa e inquieta existente na maioria dos nossos aquartelamentos, e com o risco que representavam as deslocações entre eles.
Essa calma podia ser transportada até à Base Aérea nº12, em Bissalanca, que nos dois últimos anos da nossa presença no território nunca sofreu qualquer ataque, bem como ao percurso entre a Base e a cidade, que se considerava relativamente seguro.
Nunca consegui perceber como, num conflito que vivia essencialmente de emboscadas e ataques imprevistos às nossas forças, nunca se lembrou o IN de atacar a carrinha VW (vulgo TP9) que diariamente transportava as tripulações (pilotos e enfermeiras pára-quedistas) entre a Base e Bissau.
Assim, era regra ver a carrinha chegar à BA12, vinda de Bissau, pelas 06H00, transportando o pessoal de alerta, regressando a Bissau e entrando novamente na Base às 08H00 com os tripulantes que iniciavam a actividade normal.
À tarde, pelas 18H00, repetia-se a rotina da manhã com transporte dos tripulantes que moravam em Bissau, podendo a carrinha fazer ainda mais um transporte do pessoal que, por motivos de serviço, chegava mais tarde das suas missões.
Com a facilidade em escolher o timing certo, torna-se claro que havia grandes possibilidades de êxito de uma acção do IN contra esse transporte: uma simples bazookada poderia diminuir num repente a operacionalidade da Força Aérea no território em 15 ou 20% da sua capacidade, acrescido dos efeitos psicológicos negativos que daí adviriam.
O facto é que essa hipótese nunca se concretizou, embora às vezes comentássemos essa possibilidade.
Um dia em que uma evacuação se prolongou até mais tarde, houve necessidade de se efectuar um transporte extra da enfermeira envolvida nessa missão.
Passado um tempo razoável, começou a haver alguma preocupação sobre o que teria acontecido ao transporte, pois nem a enfermeira Giselda tinha chegado a Bissau, nem o condutor tinha regressado ainda com a carrinha à Base.
Legenda:Carrinha VW de transporte dos tripulantes e da Jibóia no trajecto BA 12/Bissau.
Foto: Cedida por Miguel Pessoa
Foto: Cedida por Miguel Pessoa
Temeu-se que tivesse havido um acidente ou uma acção do IN contra a carrinha, mas logo o ambiente se desanuviou com a chegada do condutor e da enfermeira, transportando uma jibóia de bom porte, garantidamente morta, dado o estado em que apresentava a cabeça.
Esclarecida a situação, soube-se que no percurso para Bissau, ainda relativamente próximo da Base, o condutor tinha deparado com uma jibóia bem constituída que atravessava pachorrentamente a estrada por onde seguiam. Travou para evitar o obstáculo mas acabou por passar por cima dela, o que foi bem visível nos ressaltos dentro do carro... Decidiu então o condutor manobrar a carrinha de modo a colocar o rodado em cima da jibóia, prendendo-lhe os movimentos e evitando que ela tentasse um ataque contra eles. Sendo um tipo decidido, saiu do carro e, como o animal se contorcesse para se libertar, sacando da chave de cruzeta das rodas desfechou-lhe uns golpes na cabeça, no que foi ajudado pela enfermeira, tão decidida como ele, entretanto munida de uma barra de desmontar os pneus, empenhando-se os dois em acabar com o sofrimento do animal.
Foi então que regressaram à Base, onde deixaram a cobra a cargo do Oficial de Dia às Operações, tendo finalmente demandado Bissau para ali deixar a enfermeira em casa.
Não sei se no relatório do Oficial de Dia constou algo sobre esse incidente envolvendo a jibóia, mas soou-me que algum dos presentes na unidade lhe aproveitou a pele ("sopraram-me" que tinha sido o Oficial de Dia...).
A carrinha continuou a circular até ao fim do conflito, transportando os tripulantes sem mais encontros imprevistos. Quanto à jibóia, provavelmente poderá andar a circular ainda por aí, nos sapatos ou mala de alguém...
Miguel Pessoa
JC: Efectivamente esta situação de “paz consentida” dá que pensar e é um tema que, ou me tem passado despercebido, ou não é muito referido.
Já relativamente à jibóia, uma das razões da demora talvez tenha sido a procura dos sapatos da dita…não é para qualquer um andar com sapatos de cobra J
Saudações Especiais
Esclarecida a situação, soube-se que no percurso para Bissau, ainda relativamente próximo da Base, o condutor tinha deparado com uma jibóia bem constituída que atravessava pachorrentamente a estrada por onde seguiam. Travou para evitar o obstáculo mas acabou por passar por cima dela, o que foi bem visível nos ressaltos dentro do carro... Decidiu então o condutor manobrar a carrinha de modo a colocar o rodado em cima da jibóia, prendendo-lhe os movimentos e evitando que ela tentasse um ataque contra eles. Sendo um tipo decidido, saiu do carro e, como o animal se contorcesse para se libertar, sacando da chave de cruzeta das rodas desfechou-lhe uns golpes na cabeça, no que foi ajudado pela enfermeira, tão decidida como ele, entretanto munida de uma barra de desmontar os pneus, empenhando-se os dois em acabar com o sofrimento do animal.
Foi então que regressaram à Base, onde deixaram a cobra a cargo do Oficial de Dia às Operações, tendo finalmente demandado Bissau para ali deixar a enfermeira em casa.
Não sei se no relatório do Oficial de Dia constou algo sobre esse incidente envolvendo a jibóia, mas soou-me que algum dos presentes na unidade lhe aproveitou a pele ("sopraram-me" que tinha sido o Oficial de Dia...).
A carrinha continuou a circular até ao fim do conflito, transportando os tripulantes sem mais encontros imprevistos. Quanto à jibóia, provavelmente poderá andar a circular ainda por aí, nos sapatos ou mala de alguém...
Miguel Pessoa
Já relativamente à jibóia, uma das razões da demora talvez tenha sido a procura dos sapatos da dita…não é para qualquer um andar com sapatos de cobra J
Saudações Especiais