sábado, 5 de novembro de 2011

Voo 2560 OS NOSSOS HISTÓRICOS AVIADORES, GISELDA PESSOA




DIAS DE CORAGEM E DE AMIZADE


Nuno Tiago Pinto ouviu 50 testemunhos que fazem parte deste livro e descreve os momentos mais dramáticos das suas experiências nos cenáriosda guerra colonial – Angola, Guiné e Moçambique.Relatos impressionantes, na primeira pessoa, decoragem e de amizade, de medo, heroísmo,desespero, de soldados, médicos, enfermeiras que combateram em nome da pátria.








Giselda Pessoa
2ºSargºEnfª.Paraqª.
Lisboa





Todas as enfermeiras pára-quedistas gostavam de trabalhar na Guiné.

O território era mais pequeno do que o das outras províncias e chegávamos a todo o lado rapidamente. Era também mais perigoso.
Íamos mesmo à zona de combate e a certa altura eles começaram a abater aviões.
Que eu desse conta, fiquei duas vezes sob fogo. A primeira, por disparos de anti-aérea junto à fronteira, na segunda sobrevivi ao ataque de um míssil terra-ar Strella. Foi no dia 6 de Abril de 1973. Às 6:00h da manhã sai para fazer uma evacuação e quando voltei ao quartel o piloto Carvalho disse-me: - “O Baltazar desapareceu.” O avião dele tinha sido abatido no norte da Guiné e já tinham saído outros aparelhos para o procurar.
Fui ao hospital deixar o ferido e regressei a Bissalanca para irmos para a Guidaje para outra evacuação.
O Baltazar tinha sido abatido naquela zona e ainda andávamos às voltas a ver se localizavamos o avião. Nessa altura o PAIGC tentou atingir-nos. Não conseguiram por pouco: a onda de choque danificou o DO-27 e tivemos de regressar à base. Nesse mesmo dia eles ainda acertaram noutro avião.

Legenda: O Avião Dornier DO 27 acidentado.
Foto:Miguel Pessoa(direitos reservados)

Sete meses depois, caí mesmo. No dia 17 de Novembro fomos fazer uma evacuação a Catió, também numa DO 27.Ia eu, o piloto e uma enfermeira que tinha chegado há poucos dias. Tinha sempre o cuidado de levar as novas comigo para ganharem experiência. Quando estávamos perto da zona da Ilha de Como o avião falhou e tivemos de aterrar de emergência no lodo. Aquela era uma zona do PAIGC e a uns 500 metros havia um acampamento. Por sorte não deram conta da nossa aterragem.
Saímos do avião e procurámos uma zona com águas mais profundas para nos escondermos e passar despercebidos. Íamos mudando de sitio à medida que a maré ia subindo, na esperança de alguém nos encontrar. Ao fim de umas duas horas vi alguma coisa a mexer-se ao longe. Levantei-me automaticamente de dentro de água e acenei. Depois pensei: “Ai meu Deus e se é uma canoa deles?”
Afinal era uma pequena embarcação da Marinha que tinha sido enviada para perceber o que era aquele objecto estranho que estava no lodo. Pensaram que podia ser algum engenho para atacar o navio de guerra principal. Apanharam-nos e lavaram-nos para bordo. Quando voltamos ao avião já lá estava outro barco da Marinha que, entretanto tinha sido enviado à nossa procura. O mergulhador andava lá em baixo e dizia que via rastos, mas não havia sinal do piloto.
Foi quando lhe dissemos: - “Para já, o piloto não estava sozinho e está aqui.”

As comunicações não funcionavam muito bem. Em vez de avisar o barco que andava sempre de patrulha naquela zona, a Armada enviou para lá outro navio. Ainda tentaram recuperar o DO-27,mas o destino foi a sucata.Quanto a nós, metemo-nos noutro avião e seguimos para Catió, onde o doente ainda estava à nossa espera. Cheguei à base quase às 15h00.Tinha saído pouco depois das 6h00.Apesar de tudo esta queda passou-me um pouco ao lado. Primeiro porque não foi uma situação tão perigosa como o míssil. Depois porque no dia seguinte vim para Lisboa. A enfermeira que estava lá mais uma semana e só depois veio a Portugal, passou pior. Ficou no mesmo ambiente a pensar no que tinha acontecido. Ainda assim, quando regressei a Bissau e entrei outra vez num DO-27,ouvi um barulho e disse ao piloto que aquilo não me estava a soar bem. Ele olhou para mim e riu-se. Deve ter pensado que estava era com medo. O que é certo é que descolámos e, durante o voo, ele percebeu que o avião não estava bom e tivemos de regressar à base.
Nós viajávamos para Lisboa alternadamente para acompanhar os feridos. Cada semana vinha cá uma. Se estivéssemos lá quatro enfermeiras viajávamos de mês a mês, a não ser que houvesse algum enfermeiro ou médico de um hospital que precisasse de cá vir.
Nesse caso eram eles que acompanhavam os doentes e nós ficávamos lá, onde fazíamos falta. As nossas viagens eram aproveitadas por famílias dos militares que sabia que nós andávamos sempre de um lado para o outro e iam ao aeroporto entregar-nos encomendas para trazermos. E nós fazíamos-lhes esse favor.
Também levávamos coisas para nós. Talvez por isso o nosso apartamento estivesse sempre cheio de gente: militares que viviam no prédio e nos edifícios à volta e também de colegas da base que tinham ali um refúgio e local de convívio.As nossas viagens serviam ainda para o pessoal saber das últimas novidades da metrópole. Quando foi o 16 de Março, por exemplo, eu estava em Lisboa. Ao chegar à Guiné disse ao pessoal que os militares das Caldas tinham saído em direcção a Lisboa para fazer uma revolução. Mas, na brincadeira, contei também que o Salazar tinha enviado as mulheres policias para lhes fazer frente e que eles fugiram com medo. Ficou toda a gente convencida que eu estava a inventar tudo. Só quando, algum tempo depois, a notícia lá chegou é que perceberam o que tinha acontecido.

Legenda: Com a Rosa Mendes e um camarada do Exército.
Foto:Miguel Pessoa(direitos reservados)

Brincava com eles tal como eles brincavam connosco. Os soldados estavam habituados à presença das enfermeiras e tratavam-nos como um deles. Nunca fomos desrespeitadas. Às vezes podiam tentar “apertar” connosco. Uma vez, quando estava de alerta num aquartelamento, decidi folhear umas revistas. Quando me ausentei um bocado, o pessoal resolveu substitui-las por um conjunto de Playboy’s e ficaram à espera da minha reacção. Só que eu percebi que havia ali marosca e folheei-as com toda a calma.

Legenda: Durante uma evacuação,do seu lado dirº o Pita do lado esqº (?) o Poeta.
Foto:Miguel Pessoa(direitos reservados)

Não faço a mínima ideia de quantas pessoas foram buscar. Foram muitas. Estive 26 meses na Guiné e houve dias em que fizemos três e quatro evacuações em zona de combate. Normalmente entrávamos às 8h00 e saíamos às 18h00.Quando estávamos de serviço, tínhamos que estar na base ás 6h00 da manhã com o nosso equipamento – para o caso de ter havido alguma coisa durante a noite que justificasse uma evacuação urgente. Levávamos uma bolsa com soros, medicamentos para as dores, e utensílios para estancar hemorragias.
O essencial para os mantermos vivos.
Trazíamos todo o tipo de gente, civis, militares e até elementos do PAIGC. Estes quando eram feridos perto dos aquartelamentos iam para lá porque era onde havia socorro. Fiz vários. Lembro-me de um homem e uma mulher que fui buscar a um aquartelamento. Meti-a no avião e depois ele disse-me qualquer coisa em português correcto. Os soldados ficaram danados: enquanto estiveram à nossa espera falaram com ele em francês e em português, mas o tipo não disse uma palavra. Devia de estar com medo de ser interrogado e sabia que a partir daquele momento estava em segurança.
Há duas situações que não me esqueço. Uma mais dramática de um militar que ao entrar no helicóptero me suplicou:”Dê-me a mão que eu vou morrer. Já que não tenho aqui a minha mãe, dê-me a sua mão.”Ainda lhe pedi que me deixasse ver o que se passava. Mas quando abri a camisa vi que ele tinha o peito desfeito por um tiro que lhe tinha entrado pelas costas. Percebi que não podia fazer nada. Não aceder seria tirar-lhe o que mais queria. Dei-lhe a mão e ele faleceu. Na altura já lá estava algum tempo. Além disso, os dois anos que trabalhei no serviço de urgência no Hospital de São João, ajudaram-me muito. O mais difícil era distinguir qual o primeiro a ser evacuado quando chegavamos a um sitio com vários feridos. Depois, atirávamo-nos ao que tínhamos de fazer. A parte profissional vinha ao de cima.
A outra situação passou-se num destacamento no nordeste da Guiné. O helicóptero aterrou e a vitima entrou. Entretanto um furriel que estava destacado pediu-me para não me ir logo embora, tinha a mulher a viver numa tabanca fora do quartel e à vários meses que ela não via outra branca. Disse-lhe que não podíamos demorar muito tempo – além disso estávamos com pouco combustível – mas ele insistiu e saltou para uma mota. Ainda ficámos ali um bocado, só que o piloto teve mesmo que levantar voo. Ainda os vi a aproximar-se na mota com ela a dizer-me adeus e eu a acenar-lhe a ela. Eu que nunca tinha chorado na Guiné não consegui conter as lágrimas. Aquilo comoveu-me. Achei que aquela mulher precisava de me ver, embora não a conhecesse.
Ainda voltámos outras vezes àquele aquartelamento, mas nunca mais os voltei a ver.