segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Voo 2600 EM SALAMANCA PARA APRENDER A VOAR NO T-6.





Gabriel Cavaleiro
1ºSargº.Mil.Pil
Olhão




Aprendi a voar o T-6 em 1962/1963 em Salamanca, na Base Aérea de Matacán da Real Força Aérea Espanhola, Ejército del Aire.


Terminado o curso básico de pilotagem em Aveiro, de Maio a Agosto de 1962, no Chipmunk, os pilotos da Força Aérea eram sempre recambiados para Sintra onde se seguia a aprendizagem final, antes do brevetamento (entrega das asas de piloto já formado) em T-6.
Devido à sobrecarga de alunos pilotos em Sintra nos primeiros anos da guerra do Ultramar a nossa progressão ficou em suspenso e foi então decidido que os dez melhores classificados alunos pilotos desse curso, P1/62, fossem colocados na “academia do T-6” em Salamanca, ao abrigo de um acordo para a formação de pilotos portugueses pelos Espanhóis, onde já tinham estado outros tantos pilotos da nossa Academia Militar, recentemente.
E lá nos meteram num avião que já poderia ter andado na Guerra Civil de Espanha, o JU 52, rumo a Salamanca.



Legenda:A Catedral Nova de Salamanca e a Ponte Romana sobre o Rio Tormes

À nossa espera estava uma muito simpática recepção com os oficiais superiores da Base Aérea e os nossos futuros instrutores, num beberete ao ar livre. Não estávamos á espera de tanta deferência, mas também não durou muito.
Quando olharam bem para as nossas fardas e descobriram que não era-mos os oficiais da Academia da Força Aérea que estavam á espera, como os outros que lá tinham estado antes, mas simples soldados milicianos, (dois eram já Sargentos) fomos encaminhados dali para fora. E adeus beberete!
Começou menos bem a nossa estadia em Salamanca.


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Legenda: Designación del fabricante: T-6 Texan

Legenda:Designación del Ejército del Aire: E-16 y C-6





E teve segundos e terceiros capítulos. Começaram por nos alojar numa camarata com outros 60 espanholitos da nossa idade que iriam começar também o curso. Mas para a integração Ibérica finalmente se concretizar, as nossas camas estavam espalhadas no meio daqueles olés todos. De imediato os Viriatos em que nos transformámos logo ali, formámos um quadrado, bem ao jeito de Nuno Álvares, com as nossas oito camas (os outros dois foram para a messe dos Sargentos) quatro cabeças contra quatro cabeças e preparámo-nos para a guerra! Isto durou uns dias. Sempre que chegávamos das aulas, ao fim da tarde, lá tínhamos que reconstruir “o quadrado português” que era desfeito assim que saiamos da camarata. Não foi fácil convencer nuestros hermanos, até que ao fim de uns dias perceberam…
Eis, então, que chega o 1º Domingo passado na base.
Eram 6 da manhã e um Sargento, daqueles de 1962, estava ao meu lado aos berros:
- A pied! (levantem-se).
Como?!Tínhamos que ir á Missa. E era oficial. Em Espanha todos os militares iam á Missa ao
Domingo. Todos?!
O Sargento de dia não nos conseguiu levantar. Nem pensar! E foi chamar o Oficial de Dia: “los portugueses não se querem levantar para ir à Missa!”
E veio o Oficial de Dia, um dos nossos instrutores, que se postou mesmo em frente a mim, aos berros também:
- A pied!
Como?!
Ficámos na cama e ninguém nos chateou mais. Nunca mais.
Os Oficiais iam à Missa de missal na mão… e a Sargentada e soldadesca atrás, tudo em fila.
- Los portugueses son uns tios muy cojonudos!
Foi o que se ouviu o resto do dia na base…
Entretanto o Outouno ia dando lugar ao Inverno e o frio era muito. Vários de nós tínhamos vindo de Angola e de Moçambique e de vidas muito melhores. Pelo menos água quente tínhamos sempre nas nossas casa e aqui era coisa que não existia.
Nesse inverno de 1962/63 eu só conseguia tomar banho ao fim de semana, numa Pensão em Salamanca.
Normalmente, na Base, lavava um membro por dia, já perto da temperatura de congelação. A temperatura mínima desse Inverno, em Salamanca, andou sempre entre os -10/-20ºC! A camarata também não tinha aquecimento.
Depois de muito protestarmos, lá nos organizaram um banho colectivo na Base. Estranho? Nem por isso: entrámos em fila indiana, todos nus, numa dependência que tinha um murete de uns 40cm no centro daquilo e que ia dando a volta, por ali fora.
Do murete saiam vários esguichos de água que nos lavavam “as partes” à medida que íamos andando de pernas abertas, uns atrás dos outros. E de cima outros esguichos, tudo de água quente! Como é de ver foi o primeiro e último banho que nos deram naquela linha de montagem. Nunca soubemos se aquilo era mesmo para gente ou para alguma espécie de animal que por lá criassem.
O que a Espanha mudou!

As fardas que tínhamos também eram as normais. E o fato de voo era em algodão fino. Não tínhamos nenhum abrigo, casaco ou sobretudo. Só o colete de sarja por cima da camisa deterylene (fibra sintética da altura).
Num dia de mais frio tomámos uma grande decisão. Fomos todos para Salamanca, para as lojas de casacos de cabedal. Cada um escolheu o que quis. Uns escolheram blusões em pele preta com zips cromados e tachas a condizer outros com menos ou nenhuns enfeites, mas não havia dois iguais. E passámos a andar assim fardados, para grande espanto dos militares espanhóis e para raiva do nosso Embaixador em Madrid que espumava ao telefone com o nosso colega Sargento mais graduado com as constantes queixas que lhe chegavam da Base. Nada a fazer. Era o frio!

Legenda:Museu del Aire Quatro Vientos, Madrid

Uma bela tarde aterra na Base Aérea de Matacán uma comitiva de Oficiais Superiores portugueses.
O encontro deve ter sido histórico para aqueles senhores. Nós os 10 impecavelmente fardados de blusões de cabedal preto com tachas cromadas e outros enfeites, a fazer-lhes continência e eles a acharem que estavam na Broadway, num qualquer musical…
Numa das voltas da visita, um deles, fardado com aqueles casacos da farda de cerimónia, de boa lã, cheio de reconcofes bordados em alto-relevo, muito quentinhos e vistosos, vira-se de repente e pergunta:
- Mas o que vem a ser isto? Que farda é esta?
- Temos frio!
Foi a única resposta.
- E vamos ter de escolher outra vestimenta qualquer para enfrentar os muitos graus Centígrados negativos que sofremos em voo com aqueles fatos de algodão fininho e sem luvas...
Silêncio total. E nunca mais ninguém nos disse nada. Passou a ser, obviamente, fardamento legal até o frio acabar.

E no fim dessa semana recebemos uns fatos de voo fantásticos que, sem nenhum exagero, nos faziam parecer o boneco da Michelin, tão almofadados e isolados eram. E luvas de cabedal até ao cotovelo. Acabara-se o frio.

Tínhamos aulas á parte, as teóricas, para nos familiarizarmos com a língua. O curso foi dado, como é óbvio, em Castelhano.
Foi a primeira vez que os jovens pilotos oriundos de África viram neve. Em Salamanca ainda era-mos uns 4. Um era mesmo preto e outro imitava… Um dia, em plena aula de Meteorologia logo por acaso, o professor reparou que uns quantos olhavam para fora sem atenção nenhuma ao que ele dizia. E era um excelente professor! Quando percebeu que nunca tínhamos visto neve acabou ali a aula para as “crianças” poderem ir brincar para a rua…
Porque recusámos a comida da messe, intragável, passámos a comer numa cantina civil, um boteco, à nossa custa, claro. Só nós os dez, em grandes almoçaradas também intragáveis que por vezes eram substituídas por latas de leite condensado. Latas essas que em dias de maior desespero tinham a característica de conseguirem atravessar o vidro da janela do bar, em voo rápido mas controlado.
Um dia até um prato cheio de não sei quê com muito molho vermelho-acastanhado veio na minha direcção, o prato sozinho, no ar. Ia para o meu parceiro do lado, numa zanga por causa da beleza de uma irmã que ninguém conhecia mas tinha de ter a honra defendida. Se não me agachasse o conteúdo gorduroso não teria ficado esparramado na parede como ficou, o molho todo a escorrer por ali abaixo…
Tive como instrutor o Tenente Cervera, a quem chamavam o meu irmão mais velho, provavelmente pelo seu normal bom comportamento… Tinha só umas 4500 horas de voo, em instrução em T-6. Este Senhor, ensinou-me a fazer a 1ª inspecção exterior do avião com muita segurança. Nenhum pormenor ficou por verificar. Por exemplo, ao chegar à roda de cauda, sacou do "instrumento" e explicou-me:
- Aqui mija-se!
E aviou-se. E eu tive de me aliviar também…


E ao constatar que "los Portugueses" tinham aptidão para tal, tentou largar-nos em voo em formação, 4 aviões juntos, com descolagem dois a dois também. Mas como o curso anterior, dos outros Portugueses, mal preparados, não o conseguira, a coisa não foi autorizada. Era um desprestígio para os Oficiais que não tinham sido largados (Pilotos da Academia Militar que tinham feito o Chipmunk ao longo de 3 anos em vez dos 3 meses seguidos que os Milicianos faziam)
Convém lembrar aqui que estávamos em plena era Franquista, Salazarista, Guerra do Ultramar, etc., de férrea disciplina militar... (coisa que, pelo que aqui já foi dito, não se aplicava a nós…)
Pois o meu Instrutor não esteve com meias medidas. Arranjou outros 3 pilotos portugueses e largou-nos à revelia das ordens superiores, chefiando ele a formação dos 4 aviões mas comigo a pilotar o seu avião (no mesmo avião) e os outros em voo solo.

Legenda:Imagem de 2007 do Aeroporto de Salamanca, onde tudo isto se passou 45 anos antes...

Facto consumado, o Major Comandante da Esquadra resignou-se e no dia seguinte, nomeou-me chefe da 2ª parelha, agora a voar solo e fomos novamente os 4 para o ar, ele no avião de um dos outros, na frente da formação. E quando o Major resolve dar uma de tresloucado e desata a fazer todos os disparates possíveis, incluindo esconder-se com o asa dele dentro de uma nuvem, eu, o responsável pela outra parelha, achei que o melhor era estar quieto e não o perder de vista. Quando a coisa acalmou e ele saiu da nuvem de vez, juntei-me a ele com o meu asa e lá acabámos o voo após um violento e prolongado dog-fight (aviões em fila indiana a ter de seguir o chefe em tudo o que ele fizer).
Por não ter ido atrás do chefe quando ele fez os disparates nem para dentro da nuvem, achei que tinha terminado ali a minha aviação militar. Mas ninguém me obrigaria a fazer tal coisa.
Após a aterragem, o Major enfiou uma tremenda cara de pau e eu o rabo entre as pernas. E foi assim que ele abriu a porta da Esquadra.
Antes de entrar, virou-se calmamente para nós os quatro, com o mesmo semblante e disse pausadamente:
- Muy Bien.
Este foi o nosso debrieffing... nem mais uma palavra.
Era oficial. Estávamos largados em formação e todos nós iriamos ser largados!

Legenda:A minha Asa de Piloto do Ejercito del Aire Espanhol

Mas há mais... Voo nocturno. Também foi difícil a autorização para sermos largados nesta modalidade, pelas mesmas razões que disse quanto ao voo em formação.
Depois do treino em altitude, numa noite de luar, devia fazer a seguir 3 voltas de pista antes de hipoteticamente ser largado. Mas não, com o meu instrutor não era assim. Nunca era assim. A Lua entretanto pôs-se. Noite preta como breu. Uma grande confusão tudo aquilo... Ao fim da primeira volta de pista o homem desiste, apeia-se e diz-me: "boa sorte!" e pira-se. E agora o que é que eu faço à minha vida? Foi o meu primeiro voo nocturno a solo.
Anos mais tarde, já depois de ter voado o T-33 e o F-86F, eis que chega a minha vez de ir para a Guerra do Ultramar.


Legenda: O meu T-6 em Vila Cabral, 1968

Fui em 1967 para Moçambique e voei este avião durante dois anos no Distrito do Niassa, capital Vila Cabral e esporadicamente em Mueda.
Estive destacado voluntariamente em Vila Cabral oito meses seguidos.
Acabei os dois anos de comissão no Ultramar e o meu serviço na Força Aérea, sete anos, em Nova Freixo.
Passei à disponibilidade em Fevereiro de 1969

Gabriel Cavaleiro