DIAS DE CORAGEM E de AMIZADE
Nuno Tiago Pinto ouviu 50 testemunhos que fazem parte deste livro e descreve os momentos mais dramáticos das suas experiências nos cenários da guerra colonial – Angola, Guiné e Moçambique. Relatos impressionantes, na primeira pessoa, de coragem e de amizade, de medo, heroísmo, desespero, de soldados, médicos, enfermeiras que combateram em nome da pátria.
Nunca pensei ser enfermeira Pará-quedista. Trabalhava no Hospital de S.João quando uma colega me disse que nos tinha inscrito às duas e que íamos ser contactadas para ir fazer provas. A minha reacção foi: “És maluca? Eu alguma vez vou ser capaz de saltar de um avião?”
Era uma rapariga ingénua, como todas as da época. Não sabia o que era a guerra. Tanto que a minha preocupação não foi ir para lá,foi entrar num avião e atirar-me cá para baixo.
A primeira vez que entrei num quartel foi horrível: pensei que estava a meter-me num campo de concentração. Fomos de comboio de Lisboa para Tancos e no caminho, uma enfermeira que tinha tido um problema físico no curso anterior e passou para o nosso, foi o tempo todo a dizer como o salto da torre era horrível. Quando passamos a porta de armas havia uma quantidade de rapazes novos, em tronco nu, com o capacete e a arma alinhados no chão à espera de serem vacinados. Foi a primeira vez que vi uma arma. Levaram-nos para o Casal das Pombas, uma casa afastada dos alojamentos dos soldados, que não podiam lá entrar. Vi umas camas com uns colchões horrorosos e uns cacifos ferrugentos. Depois andavam sempre grupos a correr, a cantar e a fazer ginástica com os jovens meios despidos. Se chovia ninguém usava chapéu. Só pensava “ó meu Deus, onde é que me vim meter?”
Estava convencida de que não ficava. Como passei nos exames médicos resolvi fazer as provas físicas. As piores foram as de corrida, acabei sempre em última. Quanto à torre, não sei se foi por ter imaginado uma coisa imensa, achei que podia ser pior e não tive medo. Era um salto para o vazio, com um colete e arnês,tipo pára-quedas,para ficarmos penduradas. Quando o instrutor dizia”já”,tínhamos de saltar logo. O problema era a decisão. E a torre era eliminatória: quem hesitava ou recusava chumbava.
No percurso de paralelas caí e fracturei a rotula. As minhas colegas acabaram o curso e eu fiquei para trás. Devia terminar no ano seguinte,mas como não houve candidatas acabei por fazê-lo sozinha. A minha primeira comissão foi na Guiné,em 1969. Nessa altura já tinha uma ideia do que ia encontrar. Estive lá 13 meses,até 1970. Depois fui para Angola,para o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº 21,onde fiquei 15 meses, até Julho de 1971. No final desta comissão vim para Tancos dar um curso de primeiros socorros a soldados. Em Janeiro de 1973 fui para Moçambique, onde fiquei até Dezembro.
Quando lá cheguei não tive dificuldades. Estive algumas semanas em Lourenço Marques para aprender como se faziam as evacuações transatlânticas. Aquilo é enorme. Havia o precursode Lourenço Marques e da Beira para Lisboa, de Nampula para a Beira e de Mueda para Nampula. Isto além dos voos locais. Tínhamos de conhecer uma quantidade de regras para nos munirmos de material necessário para as viagens que eram horríveis, de tão longas.
Como Portugal não tinha relações diplomáticas com a maioria dos países da região, os aviões não podiam vir em linha recta. Parávamos em Angola, depois Cabo Verde ou nas Canárias. Fora as vezes que o avião avariava e tínhamos que aterrar. Isto implicava estar sempre a retirar e embarcar doentes que vinham com soros. Queimados, algaliados e pacientes de psiquiatria.
Chegava estoirada. Numa dessas viagens dormi quatros noites em sítios diferentes. No outro dia de manhã não sabia onde estava. Nem reconhecia a minha casa.
A maioria das minhas colegas diz que a Guiné foi o pior sitio por onde passaram. Eu acho que Mueda foi o local mais difícil para se estar a partir de 1972. É que a guerra não é só tiros e evacuações. É também o isolamento. Nós éramos três enfermeiras . Aquilo era um quartel mínimo, rodeado de arame farpado,que era atacado durante a noite. A população do exército era relativamente reduzida e a pista tão pequena que,ao aterrar,os aviões Fiat,tinham que largar um pára-quedas para conseguirem travar a tempo. Era tão tenso que os pilotos estavam 15 dias e depois iam para Nacala. Chegávamos ao fim da tarde e não havia um café,um cinema ou um local para conversar. Também não havia famílias. Em Bissau não.
À noite podíamos sair para ir comer um gelado,ou uns perceves e estavam lá varias famílias de militares.
Vivíamos numa vivenda com os médicos da enfermaria. Nós tínhamos um quarto eles outro. Eu sentia uma necessidade enorme de me vestir à civil. Quando acabavam os voos mudava de roupa e ia tirar fotografias ao por do sol. Nem me lembrava que isso podia incomodar alguns militares. As minhas colegas não. Estavam de camuflado até ir para a cama. A comida era horrível. Foi onde emagreci mais: sai de lá com 58 kg.
A certa altura Mueda começou a ser atacada. Bissau nunca foi. Um dia caiu uma bomba a dois metros da nossa casa. Eu tinha vindo a Lisboa e quando lá cheguei encontrei uma cratera enorme. A partir dessa altura o responsável pela segurança construi-nos um abrigo subterrâneo. Muitas vezes deitávamo-nos cansadíssimos e as bombas começavam a cair.
Tínhamos de nos levantar e ir para o abrigo. Em termos psicológicos tudo isto foi muito mais desgastante do que na Guiné. O trabalho era idêntico.
Vivi aqueles anos intensamente, apesar do dramatismo e de ter visto coisa de que não gostei e de que me não esqueci. Fui buscar mortos e feridos completamente destruídos e desfigurados.
Muito mais do que na Guiné por causa das minas. Um dia entregaram-me uma capa de camuflado, atada com um nó, com os bocados de um homem lá dentro. Quando cheguei ao hospital entreguei-o e os médicos pediram-me que os ajudasse noutra situação. Quando ia para o bloco alguém abriu a trouxa e vi os restos de um corpo humano que não se sabia se era branco ou negro. Estava tudo tão desfeito…era chocante. Vinha lá uma bota e só quando a tiraram viram que tinha lá um pé. Foi ai que soubemos que era um ferido branco.
Também houve coisas engraçadas. Uma manhã fui chamada para fazer uma evacuação imediatamente. Quando lá cheguei vinha um rapaz a coxear. Não percebi o que ele tinha porque não vi sangue. O que o acompanhou disse que tinha sido uma mordedura. Pensei logo numa cobra, mas só quando íamos a bordo é que ele me contou o que aconteceu. Nessa noite estavam a dormir no mato quando ele teve vontade de fazer uma necessidade e precisou de sair do circulo. Avisou os que estavam a vigiar e foi. Quando baixou as calças, apareceu-lhe um leãozinho bebé que viu aquele cuzinho branco e deu-lhe uma dentada. O rapaz não podia gritar porque denunciava a posição ao inimigo, nem podia puxar as calças porque o leão não o largou durante alguns segundos – teve sorte em ser bebé. Quando ele nos descreu isto foi um fartar de rir.
Para compensar havia situações que nos deixavam a pensar no sofrimento das famílias. Em Julho ou Agosto de 1973, depois de Macimboa da Praia ser atacada, chamaram-me para fazer um transporte. Quando lá cheguei não era nenhum ferido,era uma mulher. O marido estava com ela em casa quando ouviu rebentamentos e veio cá para fora. Abriu a porta e foi atingido.
Ela estava com um ar completamente perdido. Não chorou, não falou, não olhou para mim, nem nada. Tinha uma solidão profunda estampada no rosto. Fez-me muita impressão. Os nossos militares chamavam tanto pelas mães quando eram feridos e nós pensávamos o que elas podiam estar a passar. Mas ali é que vi o sofrimento real.