quarta-feira, 29 de março de 2017

Voo 3520 O PIRATINHA - Parte II




José Guedes
Cmt.TAP
Lisboa




Dado que a minha estratégia de sedução parecia estar a resultar e uma vez que o Comandante do voo achava bem que eu mantivesse aberto o canal de comunicação acabado de estabelecer, decidi passar à ofensiva.
- Pronto, R, já estamos a caminho de Madrid. Daqui a uns quarenta minutos estaremos a aterrar em Barajas, mas por favor agora acalma-te e deixa de nos apontar essa pistola antes que faças algum disparate.
Estas palavras pareceram surtir efeito. O R sentou-se na cadeira por trás do Comandante e pousou a arma no regaço, porém sem nunca a largar da mão.
- OK, mas não tentem enganar-me, respondeu. Sei bem o que quero e não tenciono desviar-me um milímetro do meu plano.
Tudo estava a decorrer como mandam os livros. A regra número um em situações deste tipo é não resistir. O disparo de uma arma, mesmo de pequeno calibre, pode provocar danos irreparáveis num avião e colocar em perigo a vida de todos os seus ocupantes. É absolutamente imperioso evitar que isso aconteça. Depois há que estabelecer canais de comunicação e criar um ambiente propício à negociação.
- Muito bem, R, continuei, enfatizando o "R" para que a simples menção do nome acentuasse a sensação de proximidade. E o que é que tu queres afinal?
Durante alguns instantes fez-se um profundo silêncio. R parecia reflectir sobre a situação, baixando os olhos por alguns instantes. Até que lá veio a resposta à minha pergunta:
- As coisas em minha casa andam muito mal. Os meus pais não se entendem e eu não quero aturar mais aquilo.
- Sim, eu compreendo, respondi. Mas que tem isso a ver com esta loucura?
- Estou farto. Quero vinte milhões de dólares e um salvo conduto para a Suiça.
Fiquei gelado. Que disparate era este, quem é que convenceu este rapaz que se conseguem vinte milhões de dólares assim do pé para a mão e ainda por cima à noite? E quem lhe disse que depois poderia fugir para a Suiça e manter-se por lá em completa liberdade ao abrigo do tal salvo conduto? Havia que manter a calma. Pelo menos já sabíamos o que estava em jogo, já era qualquer coisa.
- Vinte milhões de dólares? Não vai ser nada fácil, disse. E a quem deveremos pedir tamanha importância?
- À TAP, claro.
- À TAP???" perguntei. Mas tu não sabes que a TAP não tem dinheiro para mandar cantar um cego? Não lês os jornais?
De facto já na altura a TAP dava mostras de grande fragilidade financeira devido à perda de algumas das linhas mais rentáveis, Angola e Moçambique nomeadamente, e às sucessivas greves que afectaram a empresa durante o período revolucionário, razão pela qual eu achava que o argumento tinha tudo para ser convincente. E foi.
- Então a quem peço?, inquiriu R surpreendido.
- Não faço ideia, mas essa quantidade de dinheiro não vai ser fácil de encontrar em Portugal. Somos um país pobre, como sabes. Além disso os bancos estão fechados durante a noite.
- Muito bem. Sendo assim vamos então pedir os vinte milhões de dólares ao Governo. Assunto arrumado.
Pois que fosse então o governo a resolver a questão. O primeiro ministro da altura era Francisco Sá Carneiro e ele já tinha traquejo mais que suficiente para lidar com problemas deste género. Não iria encontrar os tais vinte milhões de dólares, isso eu tinha a certeza, mas iria certamente aparecer com uma solução bem mais criativa. Pelo menos era essa a minha expectativa.
Entretanto o Boeing 727 da TAP aproximava-se do Aeroporto de Barajas em Madrid onde entretanto já fora accionado o dispositivo de emergência previsto para situações deste tipo. O Controle de Tráfego Aéreo espanhol passou a comunicar connosco numa frequência VHF específica e afastou da nossa rota todos os aviões que se encontravam na sua área de responsabilidade. O nosso voo era agora o centro de todas as atenções.
A aterragem em Barajas decorreu sem qualquer problema numa altura em que as luzes de baixa pressão das bombas de combustível já começavam a piscar, significando isso que já não nos restariam mais que 10 ou 15 minutos de voo até que os três reactores Pratt & Whitney do avião começassem a falhar. Isso acontecia porque o aeroporto alternativo previsto no plano de voo era Lisboa e não Madrid, que fica um pouco mais distante de Faro. Mas ainda tínhamos os tais 15 minutos de reserva pelo que a situação de combustível poderia considerar-se relativamente benigna dadas as circunstâncias.
Logo após a aterragem o nosso "pirata do ar" pediu o microfone do sistema de comunicação interno e anunciou ele próprio aos passageiros o que estava a acontecer enquanto que nós, pilotos, tudo fazíamos para tentar descobrir o local remoto longe da placa de estacionamento para onde a Torre de Controle nos queria enviar. Esta é uma prática habitual em situações deste tipo, isso já eu sabia, mas confesso que a ideia de passar a ter o avião cercado por umas dezenas de agentes das forças especiais não me deixava nada tranquilo. Era preciso evitar que as forças de segurança tomassem de assalto o Boeing, operação de alto risco que só aprovaríamos se tudo o mais falhasse.
- Diga-lhes que tenham calma, por favor, implorei ao controlador de serviço na Torre de Controle de Barajas. O sequestrador é um jovem emocionalmente perturbado, estamos a conversar com ele há um par de horas e acredito que tudo se vai resolver a bem. É só uma questão de tempo. Entretanto peçam ao embaixador de Portugal para comparecer na Torre de Controle logo que possível. Vamos ter que negociar.
Ficámos então à espera que o nosso embaixador saísse da cama e viesse para o aeroporto tentar resolver este enorme problema. Entretanto tínhamos muito que fazer a bordo do Boeing 727 da TAP. Desde logo manter a calma dos oitenta e três passageiros e restantes tripulantes, para não falar nos agentes da força de intervenção que tomaram posição em volta do avião. Repetimos até à exaustão junto dos nossos interlocutores no aeroporto que a situação estava sob controle e que não seria necessário o uso da força para resolver o problema, pelo menos na fase em que então estávamos. Apesar disso, soube mais tarde que os agentes especiais chegaram a treinar a operação de resgate num B727 da Iberia que estava estacionado na placa do aeroporto. Mas havia outras questões para resolver, nomeadamente a falta de comida a bordo. Como originalmente este era um voo doméstico o plano de "catering" apenas previa um serviço de bebidas (chá, café, sumos) aos passageiros, razão pela qual estes começaram a pedir qualquer coisa para comer pouco depois da chegada a Madrid. Havia jovens e crianças a bordo, cujos estômagos não podem estar inactivos durante grandes períodos de tempo e por isso era necessário procurar uma solução compatível com o estado de emergência em que nos encontrávamos. Discutimos o caso com o R, que continuava sentado no cockpit sempre com a arma na mão. Ele concordava que esta questão tinha que ser resolvida mas não aceitou a sugestão da equipa que conduzia as negociações para que um contentor com víveres fosse enviado para bordo, talvez porque receasse algum produto "extra" que pudesse vir a ser incluído na embalagem. Pediu então para que se fizesse uma contagem das mulheres, crianças e idosos que estivessem entre os passageiros para eventualmente serem libertados. Dizem os livros que este é o primeiro sinal de fraqueza que um "pirata do ar" revela durante uma situação deste tipo, facto que eu não ignorava e que por essa razão transformei num sinal de esperança. Mas o problema ainda não estava resolvido, longe disso.
Passado todo este tempo confesso que não me lembro dos números, mas vamos admitir que seriam trinta e oito os candidatos à libertação imediata, a maioria mulheres e crianças. Confirmada a autorização por parte do R informámos a torre de controle que alguns passageiros iriam abandonar o avião pela porta situada na cauda do aparelho à qual está acoplada uma escada estrutural. Claro não era possível controlar quem saía e quem ficava a bordo naquelas circunstâncias, pelo que bastava espreitar através das janelas do cockpit para ver que mais de cinquenta pessoas corriam já desordenadamente em direcção aos edifícios do aeroporto. O R não gostou do que viu e ordenou que se fechasse imediatamente a porta:
- Quem saiu, saiu. Não sai mais ninguém, gritou através do microfone.
Convém aqui recordar que havia três reféns (nós próprios) no cockpit e que por essa razão as ordens, quaisquer que fossem, eram para cumprir. Ainda por cima sendo eu o interlocutor privilegiado de quem detinha o controle da situação seria seguramente o primeiro a ser abatido se algo corresse mal. Logo eu que tinha passado dois anos na guerra colonial em Angola sem ter sofrido um único arranhão e que pilotava aviões há mais de seis ia agora sucumbir a um disparate destes? Nem pensar, não estava nada para aí virado.
A porta das traseiras foi então novamente fechada numa altura em que já se viam uns quantos vultos negros, as forças especiais, a tomarem posição cada vez mais perto do avião. Essa foi sempre, confesso, a minha maior preocupação, algo que escapava completamente ao nosso controle e nos colocava numa condição de vítimas indefesas perante as circunstâncias e um grupo de agentes policiais fortemente armados.
Finalmente o embaixador João Sá Coutinho (Aurora) chegou à torre de controle e esse facto bastou para nos dar uma maior tranquilidade em relação a todo o processo. Seria uma espécie de "pivot" desta negociação e acreditávamos que nenhuma decisão seria tomada sem o seu conhecimento e aprovação. Havia agora que aguardar a resposta de Francisco Sá Carneiro às exigências do nosso "pirata" entretanto transmitidas para Lisboa pelo embaixador, os tais vinte milhões de dólares no bolso e um salvo conduto para a Suiça. Enquanto aguardávamos uma decisão do chefe do governo português não nos cansávamos de pedir ao nosso interlocutor que fizesse tudo para manter as forças de intervenção sob controle pois acreditávamos que seria apenas uma questão de tempo até que tudo se resolvesse.
(Continua)
Na imagem - Durante o julgamento o advogado de defesa do R exemplifica como ele apontava a arma. Eu sou o alvo.



Origem do voo.
O Aviador


Sem comentários:

Enviar um comentário