José Guedes
Cmt.TAP
O PIRATINHA - Parte III
João Sá Coutinho era um diplomata à moda
antiga, um homem educado, afável e ponderado com muitos anos de experiência na
carreira diplomática, a pessoa ideal para levar a bom termo uma missão deste
tipo. Porém faltava-lhe a capacidade para fazer milagres e isso notou-se quando
nos transmitiu a resposta do primeiro ministro Sá Carneiro:
- Lamento, senhor Comandante, mas o primeiro ministro diz que a esta hora os bancos estão fechados e não será possível reunir qualquer quantia em dinheiro com essa dimensão. Quanto ao salvo conduto, essa figura pura e simplesmente não se aplica às actuais circunstâncias.
Belo sarilho. E agora?
O nosso amigo (agora já podia tratá-lo como tal) continuava sentado no cockpit com a arma na mão, ouviu tudo através dos alto falantes e não deixou de manifestar a sua decepção.
- Estamos mal, disse. "As coisas começam a complicar-se.
Isto podia parecer uma ameaça mas preferi pensar que não seria mais que um desabafo de alguém que começava a sentir-se encurralado. Era preciso agir depressa e sobretudo manter o bom senso.
Estávamos nós em plena conversa tentando encontrar saídas para a situação quando alguém bateu à porta do cockpit. Era a Chefe de Cabina e trazia consigo um passageiro que tinha uma proposta para apresentar. Abrimos a porta e deixámos entrar o passageiro, um homem de meia idade com a pele muito branca e cabelo claro que se apresentava como diplomata ao serviço da Suécia. Falava um razoável português e logo lhe perguntámos ao que vinha:
- Gostaria de poder ajudar a encontrar uma solução, disse. Sou sueco, diplomata, e acredito que a mediação de uma entidade neutra poderá desbloquear a situação.
A ideia não me pareceu particularmente interessante, que raio faria um diplomata sueco no meio disto tudo, mas tanto bastou para que a esperança do R renascesse e logo ali lhe deu inteira liberdade para actuar:
- Pois então diga lá qual é o seu plano.
Foi então que aconteceu um dos episódios mais caricatos daquela noite que já de si não tinha muito de normal. O embaixador da Suécia em Espanha foi chamado a comparecer na Torre de Controle do aeroporto de Barajas para negociar a libertação de um avião português mantido sob sequestro em solo espanhol e que tinha a bordo umas dezenas de cidadãos portugueses. Além do tal diplomata sueco, claro. Cerca de meia hora depois de ter sido chamado o surpreendido embaixador da Suécia chegou à Torre de Controle e pediu para falar via rádio com o seu insensato patrício que continuava no cockpit a saborear o seu momento de glória. Seguiu-se um diálogo em sueco que foi subindo gradualmente de tom, tudo levando a crer que o representante do Reino da Suécia em Madrid não tinha gostado nada de ser chamado a meio da noite para se envolver numa crise com a qual nada tinha a ver. Quando terminou a gritaria (sim, os suecos também gritam) percebi que aquele bizarra tentativa tinha falhado:
- Lamento mas o nosso embaixador diz que nada pode fazer, admitiu pesaroso o diplomata sequestrado.
- Eu ficaria muito surpreendido se acontecesse o contrário, acrescentei. E pareceu-me que ele ficou tão irritado com a vossa conversa que nem com a sua libertação se preocupou.
- Pois. De facto…
- Enfim, obrigado pela tentativa. Mas se me permite uma pergunta, qual é o seu estatuto na carreira diplomática?
- Eu? Sou vice cônsul da Suécia em Portimão.
- Vice cônsul da Suécia em Portimão???, repeti. Realmente hoje não é o meu dia de sorte.
Ainda hoje não entendo o que terá passado pela cabeça do nosso passageiro sueco para se arriscar a levar, como suspeito que levou, uma enorme reprimenda do seu embaixador. Estaria em busca dos seus 15 minutos de fama e glória ou foi apenas uma ideia pouco lúcida provocada pelo stress da situação? Agradeci a tentativa e pedi-lhe que regressasse ao seu lugar, o que fez de imediato. Fim da mediação diplomática.
O tempo passava e as negociações tinham chegado a um impasse. O embaixador Sá Coutinho continuava na Torre de Controle e íamos trocando algumas palavras via rádio sem que se vislumbrasse uma saída para a crise. À medida que o tempo passava a situação ia-se degradando. O R começava a revelar claros sinais de fadiga física e psicológica que poderiam sugerir dois caminhos: uma rendição incondicional que poderia ter sérias consequências para o próprio ou uma acção violenta provocada pelo desespero. Era necessário usar da máxima prudência e bom senso para conseguir que esta história tivesse um final relativamente feliz.
Dado o aparente bloqueio da situação resolvi jogar as cartas todas e convidei o R para uma conversa a sós no cockpit. Aceitou. Foi então que dei por mim em plena noite madrilena sentado aos comandos de um Boeing 727 da TAP a falar sobre a minha família com o jovem que me mantinha sob sequestro. Mostrei fotografias da minha filha nascida dois anos antes (é linda, não é?), falei da minha mulher, da minha mãe, enfim, das mulheres que marcavam a minha vida sabendo que o R era sensível ao assunto. Afinal ele já tinha dito que a própria mãe tinha um relacionamento problemático com o marido e que o assalto ao avião pretendia chamar a atenção para isso mesmo.
- Que achará a tua mãe de tudo isto, R?, perguntei sem grande expectativas em relação à resposta. Não respondeu na altura mas viria a responder mais tarde. Já lá iremos.
Ocorreu-me então fazer uma proposta que só a mim comprometia. Tinha consciência que podia estar a exceder as minhas responsabilidades mas também sabia que tudo era preferível a uma intervenção armada por parte das forças policiais. Decidi arriscar:
- Sabes, R, o meu pai é juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, o órgão mais importante e prestigiado do sistema judicial português. Ele próprio é uma pessoa muito respeitada e as suas opiniões são ouvidas com atenção sempre que se fala de Direito. Quando isto acabar irei pedir-lhe que use a sua influência para que este caso seja tratado com a maior compreensão e benevolência possíveis. Tu és muito novo, tens a vida pela frente, os juízes saberão dar-te uma nova oportunidade.
Não tive resposta. R fechou-se sobre si próprio parecendo reflectir sobre o que havia sido dito. Tinha um brilho especial nos olhos, talvez uma lágrima tivesse escapado ao seu controle.
- Vamos fazer um acordo, insisti. Se me entregares a arma prometo que vamos fazer tudo para que este incidente termine em Lisboa. Temos que sair daqui porque os espanhóis são terríveis a tratar destes assuntos, não podemos arriscar. Quando chegarmos a Portugal eu digo às autoridades que a tua pistola estava descarregada, sem balas. Juro pela família que há pouco te dei a conhecer.
A ideia pareceu ser bem recebida, o que me deu um novo alento. Ficámos uns instantes em silêncio, olhámos duas ou três vezes um para o outro como que à procura de sinais que falassem mais que as nossas palavras. Até que surgiu uma esperança:
- Prometes?, perguntou.
- Prometo, em nome da minha família. E prometo também que tudo farei para que o teu castigo não seja demasiado severo. Terás em mim um amigo para o resto da vida.
Isto não era apenas estratégia de negociação. Era a Síndrome de Estocolmo no seu melhor, assaltante e assaltado unidos por uma torrente de emoções que só podia levar a um de dois caminhos: sucesso ou tragédia.
- Vou pensar no assunto, disse. Preciso de tempo.
- Tens que libertar os passageiros que ainda estão a bordo, insisti. Está lá fora uma força policial pronta para intervir e não podemos permitir que eles corram riscos. Além do mais estão famintos e nervosos.
Houve uma pausa. R olhou então para mim e disse com a voz embargada:
- OK, vamos deixar sair os passageiros e as hospedeiras, mas vocês (pilotos e operador de sistemas) ficam a bordo. Isto ainda não acabou.
Boa noticia. A aventura aproximava-se do fim e agora bastava manter a calma para que ninguém deitasse a perder o trabalho até aí pacientemente desenvolvido.
Informámos a Torre de Controle que mais pessoas iriam abandonar o avião através da escada estrutural e demos então instruções à Chefe de Cabina para que procedesse de acordo. O Operador de Sistemas ficaria responsável pela recolha da escada estrutural caso todos os comissários e assistentes de bordo decidissem abandonar o avião mas algo me dizia que tal não viria a ser necessário.
O ambiente dentro do cockpit continuava tenso. A negociação continuava e as emoções iam subindo de tom. Num dado momento pareceu-me ver uma lágrima a escorrer pela face do R e isso bastou para que eu próprio começasse a largar um rio delas. Passei a sentir-me protagonista de uma telenovela mexicana de quinta categoria mas isso até me parecia de bom agoiro pois ao que consta todas as novelas, mexicanas ou outras, costumam ter um final feliz. Eu até nem aprecio particularmente cenas "lamechas" mas sabia que as emoções poderiam desempenhar um papel crucial na solução deste problema. Por outro lado todos nós revelávamos já sinais de acentuada fadiga física e psicológica, só queríamos que o pesadelo chegasse ao fim o mais depressa possível.
Os passageiros abandonaram então o avião e sem surpresa verifiquei que a tripulação de cabina optara por ficar a bordo acompanhando assim os seus colegas de cockpit naqueles momentos decisivos. Grandes profissionais, feitos daquela mesma massa que permitiu a uma companhia de aviação de um pequeno país tornar-se numa referência da indústria a nível mundial em menos de trinta anos. Mas não se tratava apenas de profissionalismo, tratava-se de solidariedade e respeito para com os colegas que ainda continuavam sob ameaça. Ainda hoje, mais de trinta e cinco anos passados sobre os factos relatados, fico sensibilizado ao recordar tão nobre gesto.
Finalmente R decidiu entregar-me a arma e as balas, ou melhor, algumas balas e a arma. Eu explico. Numa primeira fase vieram apenas as munições, cinco no total, facto que não me deixou completamente satisfeito:
- Então e a arma? E o resto das munições?, perguntei. Olha que eu fui militar, andei na guerra de Angola e sei que as pistolas costumam ter seis balas ou mais, raramente têm menos.
Fez-se um breve silêncio e depois veio a resposta completamente inesperada:
- A sexta vai ser para mim. Isto já não tem saída.
- Mas tu estás parvo ou quê?, ataquei de imediato armado em pai de um filho apanhado em flagrante a fazer um enorme disparate.
- Então agora que já encontrámos uma solução para o nosso (e acentuei o "nosso") caso é que tu queres estragar tudo? Nem penses, não o vou permitir.
A voz grossa e o tom com que falei pareciam ter surtido algum efeito. Trocámos mais algumas palavras e depois, mais minuto menos minuto, mais lágrima menos lágrima, a verdade é que a pistola acabou mesmo no interior da minha mala de voo. As balas, meia dúzia delas, ficaram no meu bolso. Estava ganha a parte mais importante da batalha. Demos um forte e emocionado abraço, como fariam dois amigos de longa data, e logo depois partimos a informar o resto da tripulação que tínhamos chegado a um acordo. Agora era preciso convencer os espanhóis a deixarem abastecer o avião para que pudéssemos regressar a Lisboa, alegadamente ainda sob sequestro. Era mentira, mas tratava-se de cumprir uma das promessas que foram feitas ao longo da noite: não iríamos entregar o R às autoridades espanholas.
O primeiro a saber das nossas intenções foi o embaixador Sá Coutinho, que se manteve todo o tempo em contacto connosco a partir da Torre de Controle de Barajas. Anos mais tarde, durante um fim de semana que minha mulher e eu passámos a seu convite na Villa Elia, Embaixada Portuguesa no Vaticano, João Sá Coutinho dir-me-ia que toda a gente entendeu a nossa "mentira", a começar pelos espanhóis. Mas como o que eles queriam verdadeiramente era verem-se livres de nós fingiram acreditar que o avião continuava sob sequestro e mandaram abastecer os tanques de combustível de acordo com as nossas instruções ao mesmo tempo que mandavam desmobilizar as forças de segurança que ainda se mantinham em posição de assalto. Estava ganha a última batalha, agora só tínhamos que voltar para Lisboa em segurança e entregar o R às autoridades portuguesas.
Com os tanques de combustível abastecidos e os motores em marcha dirigimo-nos para a pista de serviço e aguardámos autorização para seguir viagem. Uma vez obtida a "clearance" para a partida o comandante assumiu o controle do aparelho e efectuou a descolagem enquanto eu ia executando os procedimentos complementares. Uma vez no ar, com o avião "limpo" e a ganhar rapidamente altitude, foi a minha vez de anunciar ao Controle de Tráfego Aéreo que o sequestro tinha terminado e que o Boeing 727 da TAP iria regressar a Lisboa. Agradeci toda a colaboração prestada pelas autoridades espanholas e aproveitei para enviar um abraço muito especial para o embaixador Sá Coutinho, nosso anjo da guarda durante as horas em que estivemos sob ameaça no aeroporto de Madrid.
A viagem até ao Aeroporto da Portela durou pouco mais de 50 minutos, ligeiramente mais rápida que o habitual já que todos nós estávamos ansiosos por dar esta aventura por terminada. Mas ainda havia muito para fazer e alguns "nós" para desatar. Por exemplo, eu guardava na minha mala de voo uma pistola e as respectivas munições e interrogava-me se à chegada iria ter coragem para mentir às autoridades portuguesas declarando que a arma não tinha balas. Mas tinha assumido um compromisso com o R e teria que o respeitar, desse lá por onde desse. Se a mentira tivesse consequências só teria que as assumir mas o importante mesmo era honrar a palavra dada, princípio sagrado de que nunca abdicaria.
O "Bissau" aterrou na pista 36 da Portela e dirigiu-se imediatamente para um lugar de estacionamento discreto longe dos olhares dos jornalistas e dos curiosos. Note-se que desde o fim da tarde da véspera a rádio e a televisão (RTP) davam frequentes informações sobre o sequestro do avião da TAP, pelo que todo o país aguardava com preocupação e ansiedade o desfecho desta crise. Quando o Boeing se imobilizou reparei que havia nada menos que seis carrinhas da PSP cheias de agentes à espera do nosso "piratinha" agora promovido à condição de inimigo público.
O primeiro a subir a bordo foi o comandante da força de polícia, o meu bem conhecido Capitão Nortadas, responsável pelo destacamento permanente da PSP no aeroporto com quem já tivera várias reuniões no âmbito da comissão FAL-SEC a que ambos pertencíamos, ele em representação das forças de segurança e eu do Sindicato dos Pilotos. Entrou no avião, cumprimentou os tripulantes, deixou para mim um rápido "ah, era você?" e de seguida convidou o R a acompanhá-lo, ao que este acedeu de pronto.
- Então, e a arma?, perguntou.
- Está aqui, senhor Capitão, respondi.
Dito isto entreguei-lhe a pistola que tinha em meu poder. Olhou-a com cuidado, mexeu, remexeu e depois perguntou:
- Então e as munições?
- Não tinha, senhor Capitão, menti descaradamente.
- Não tinha??? Tem a certeza do que está a dizer?
- Absoluta. O rapaz não queria fazer mal a ninguém, foi só uma aventura disparatada, menti novamente com a consciência que estava a proteger alguém que durante várias horas me apontara uma arma pronta a disparar. A Síndrome de Estocolmo não parava de me apoquentar.
- Lamento, senhor Comandante, mas o primeiro ministro diz que a esta hora os bancos estão fechados e não será possível reunir qualquer quantia em dinheiro com essa dimensão. Quanto ao salvo conduto, essa figura pura e simplesmente não se aplica às actuais circunstâncias.
Belo sarilho. E agora?
O nosso amigo (agora já podia tratá-lo como tal) continuava sentado no cockpit com a arma na mão, ouviu tudo através dos alto falantes e não deixou de manifestar a sua decepção.
- Estamos mal, disse. "As coisas começam a complicar-se.
Isto podia parecer uma ameaça mas preferi pensar que não seria mais que um desabafo de alguém que começava a sentir-se encurralado. Era preciso agir depressa e sobretudo manter o bom senso.
Estávamos nós em plena conversa tentando encontrar saídas para a situação quando alguém bateu à porta do cockpit. Era a Chefe de Cabina e trazia consigo um passageiro que tinha uma proposta para apresentar. Abrimos a porta e deixámos entrar o passageiro, um homem de meia idade com a pele muito branca e cabelo claro que se apresentava como diplomata ao serviço da Suécia. Falava um razoável português e logo lhe perguntámos ao que vinha:
- Gostaria de poder ajudar a encontrar uma solução, disse. Sou sueco, diplomata, e acredito que a mediação de uma entidade neutra poderá desbloquear a situação.
A ideia não me pareceu particularmente interessante, que raio faria um diplomata sueco no meio disto tudo, mas tanto bastou para que a esperança do R renascesse e logo ali lhe deu inteira liberdade para actuar:
- Pois então diga lá qual é o seu plano.
Foi então que aconteceu um dos episódios mais caricatos daquela noite que já de si não tinha muito de normal. O embaixador da Suécia em Espanha foi chamado a comparecer na Torre de Controle do aeroporto de Barajas para negociar a libertação de um avião português mantido sob sequestro em solo espanhol e que tinha a bordo umas dezenas de cidadãos portugueses. Além do tal diplomata sueco, claro. Cerca de meia hora depois de ter sido chamado o surpreendido embaixador da Suécia chegou à Torre de Controle e pediu para falar via rádio com o seu insensato patrício que continuava no cockpit a saborear o seu momento de glória. Seguiu-se um diálogo em sueco que foi subindo gradualmente de tom, tudo levando a crer que o representante do Reino da Suécia em Madrid não tinha gostado nada de ser chamado a meio da noite para se envolver numa crise com a qual nada tinha a ver. Quando terminou a gritaria (sim, os suecos também gritam) percebi que aquele bizarra tentativa tinha falhado:
- Lamento mas o nosso embaixador diz que nada pode fazer, admitiu pesaroso o diplomata sequestrado.
- Eu ficaria muito surpreendido se acontecesse o contrário, acrescentei. E pareceu-me que ele ficou tão irritado com a vossa conversa que nem com a sua libertação se preocupou.
- Pois. De facto…
- Enfim, obrigado pela tentativa. Mas se me permite uma pergunta, qual é o seu estatuto na carreira diplomática?
- Eu? Sou vice cônsul da Suécia em Portimão.
- Vice cônsul da Suécia em Portimão???, repeti. Realmente hoje não é o meu dia de sorte.
Ainda hoje não entendo o que terá passado pela cabeça do nosso passageiro sueco para se arriscar a levar, como suspeito que levou, uma enorme reprimenda do seu embaixador. Estaria em busca dos seus 15 minutos de fama e glória ou foi apenas uma ideia pouco lúcida provocada pelo stress da situação? Agradeci a tentativa e pedi-lhe que regressasse ao seu lugar, o que fez de imediato. Fim da mediação diplomática.
O tempo passava e as negociações tinham chegado a um impasse. O embaixador Sá Coutinho continuava na Torre de Controle e íamos trocando algumas palavras via rádio sem que se vislumbrasse uma saída para a crise. À medida que o tempo passava a situação ia-se degradando. O R começava a revelar claros sinais de fadiga física e psicológica que poderiam sugerir dois caminhos: uma rendição incondicional que poderia ter sérias consequências para o próprio ou uma acção violenta provocada pelo desespero. Era necessário usar da máxima prudência e bom senso para conseguir que esta história tivesse um final relativamente feliz.
Dado o aparente bloqueio da situação resolvi jogar as cartas todas e convidei o R para uma conversa a sós no cockpit. Aceitou. Foi então que dei por mim em plena noite madrilena sentado aos comandos de um Boeing 727 da TAP a falar sobre a minha família com o jovem que me mantinha sob sequestro. Mostrei fotografias da minha filha nascida dois anos antes (é linda, não é?), falei da minha mulher, da minha mãe, enfim, das mulheres que marcavam a minha vida sabendo que o R era sensível ao assunto. Afinal ele já tinha dito que a própria mãe tinha um relacionamento problemático com o marido e que o assalto ao avião pretendia chamar a atenção para isso mesmo.
- Que achará a tua mãe de tudo isto, R?, perguntei sem grande expectativas em relação à resposta. Não respondeu na altura mas viria a responder mais tarde. Já lá iremos.
Ocorreu-me então fazer uma proposta que só a mim comprometia. Tinha consciência que podia estar a exceder as minhas responsabilidades mas também sabia que tudo era preferível a uma intervenção armada por parte das forças policiais. Decidi arriscar:
- Sabes, R, o meu pai é juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, o órgão mais importante e prestigiado do sistema judicial português. Ele próprio é uma pessoa muito respeitada e as suas opiniões são ouvidas com atenção sempre que se fala de Direito. Quando isto acabar irei pedir-lhe que use a sua influência para que este caso seja tratado com a maior compreensão e benevolência possíveis. Tu és muito novo, tens a vida pela frente, os juízes saberão dar-te uma nova oportunidade.
Não tive resposta. R fechou-se sobre si próprio parecendo reflectir sobre o que havia sido dito. Tinha um brilho especial nos olhos, talvez uma lágrima tivesse escapado ao seu controle.
- Vamos fazer um acordo, insisti. Se me entregares a arma prometo que vamos fazer tudo para que este incidente termine em Lisboa. Temos que sair daqui porque os espanhóis são terríveis a tratar destes assuntos, não podemos arriscar. Quando chegarmos a Portugal eu digo às autoridades que a tua pistola estava descarregada, sem balas. Juro pela família que há pouco te dei a conhecer.
A ideia pareceu ser bem recebida, o que me deu um novo alento. Ficámos uns instantes em silêncio, olhámos duas ou três vezes um para o outro como que à procura de sinais que falassem mais que as nossas palavras. Até que surgiu uma esperança:
- Prometes?, perguntou.
- Prometo, em nome da minha família. E prometo também que tudo farei para que o teu castigo não seja demasiado severo. Terás em mim um amigo para o resto da vida.
Isto não era apenas estratégia de negociação. Era a Síndrome de Estocolmo no seu melhor, assaltante e assaltado unidos por uma torrente de emoções que só podia levar a um de dois caminhos: sucesso ou tragédia.
- Vou pensar no assunto, disse. Preciso de tempo.
- Tens que libertar os passageiros que ainda estão a bordo, insisti. Está lá fora uma força policial pronta para intervir e não podemos permitir que eles corram riscos. Além do mais estão famintos e nervosos.
Houve uma pausa. R olhou então para mim e disse com a voz embargada:
- OK, vamos deixar sair os passageiros e as hospedeiras, mas vocês (pilotos e operador de sistemas) ficam a bordo. Isto ainda não acabou.
Boa noticia. A aventura aproximava-se do fim e agora bastava manter a calma para que ninguém deitasse a perder o trabalho até aí pacientemente desenvolvido.
Informámos a Torre de Controle que mais pessoas iriam abandonar o avião através da escada estrutural e demos então instruções à Chefe de Cabina para que procedesse de acordo. O Operador de Sistemas ficaria responsável pela recolha da escada estrutural caso todos os comissários e assistentes de bordo decidissem abandonar o avião mas algo me dizia que tal não viria a ser necessário.
O ambiente dentro do cockpit continuava tenso. A negociação continuava e as emoções iam subindo de tom. Num dado momento pareceu-me ver uma lágrima a escorrer pela face do R e isso bastou para que eu próprio começasse a largar um rio delas. Passei a sentir-me protagonista de uma telenovela mexicana de quinta categoria mas isso até me parecia de bom agoiro pois ao que consta todas as novelas, mexicanas ou outras, costumam ter um final feliz. Eu até nem aprecio particularmente cenas "lamechas" mas sabia que as emoções poderiam desempenhar um papel crucial na solução deste problema. Por outro lado todos nós revelávamos já sinais de acentuada fadiga física e psicológica, só queríamos que o pesadelo chegasse ao fim o mais depressa possível.
Os passageiros abandonaram então o avião e sem surpresa verifiquei que a tripulação de cabina optara por ficar a bordo acompanhando assim os seus colegas de cockpit naqueles momentos decisivos. Grandes profissionais, feitos daquela mesma massa que permitiu a uma companhia de aviação de um pequeno país tornar-se numa referência da indústria a nível mundial em menos de trinta anos. Mas não se tratava apenas de profissionalismo, tratava-se de solidariedade e respeito para com os colegas que ainda continuavam sob ameaça. Ainda hoje, mais de trinta e cinco anos passados sobre os factos relatados, fico sensibilizado ao recordar tão nobre gesto.
Finalmente R decidiu entregar-me a arma e as balas, ou melhor, algumas balas e a arma. Eu explico. Numa primeira fase vieram apenas as munições, cinco no total, facto que não me deixou completamente satisfeito:
- Então e a arma? E o resto das munições?, perguntei. Olha que eu fui militar, andei na guerra de Angola e sei que as pistolas costumam ter seis balas ou mais, raramente têm menos.
Fez-se um breve silêncio e depois veio a resposta completamente inesperada:
- A sexta vai ser para mim. Isto já não tem saída.
- Mas tu estás parvo ou quê?, ataquei de imediato armado em pai de um filho apanhado em flagrante a fazer um enorme disparate.
- Então agora que já encontrámos uma solução para o nosso (e acentuei o "nosso") caso é que tu queres estragar tudo? Nem penses, não o vou permitir.
A voz grossa e o tom com que falei pareciam ter surtido algum efeito. Trocámos mais algumas palavras e depois, mais minuto menos minuto, mais lágrima menos lágrima, a verdade é que a pistola acabou mesmo no interior da minha mala de voo. As balas, meia dúzia delas, ficaram no meu bolso. Estava ganha a parte mais importante da batalha. Demos um forte e emocionado abraço, como fariam dois amigos de longa data, e logo depois partimos a informar o resto da tripulação que tínhamos chegado a um acordo. Agora era preciso convencer os espanhóis a deixarem abastecer o avião para que pudéssemos regressar a Lisboa, alegadamente ainda sob sequestro. Era mentira, mas tratava-se de cumprir uma das promessas que foram feitas ao longo da noite: não iríamos entregar o R às autoridades espanholas.
O primeiro a saber das nossas intenções foi o embaixador Sá Coutinho, que se manteve todo o tempo em contacto connosco a partir da Torre de Controle de Barajas. Anos mais tarde, durante um fim de semana que minha mulher e eu passámos a seu convite na Villa Elia, Embaixada Portuguesa no Vaticano, João Sá Coutinho dir-me-ia que toda a gente entendeu a nossa "mentira", a começar pelos espanhóis. Mas como o que eles queriam verdadeiramente era verem-se livres de nós fingiram acreditar que o avião continuava sob sequestro e mandaram abastecer os tanques de combustível de acordo com as nossas instruções ao mesmo tempo que mandavam desmobilizar as forças de segurança que ainda se mantinham em posição de assalto. Estava ganha a última batalha, agora só tínhamos que voltar para Lisboa em segurança e entregar o R às autoridades portuguesas.
Com os tanques de combustível abastecidos e os motores em marcha dirigimo-nos para a pista de serviço e aguardámos autorização para seguir viagem. Uma vez obtida a "clearance" para a partida o comandante assumiu o controle do aparelho e efectuou a descolagem enquanto eu ia executando os procedimentos complementares. Uma vez no ar, com o avião "limpo" e a ganhar rapidamente altitude, foi a minha vez de anunciar ao Controle de Tráfego Aéreo que o sequestro tinha terminado e que o Boeing 727 da TAP iria regressar a Lisboa. Agradeci toda a colaboração prestada pelas autoridades espanholas e aproveitei para enviar um abraço muito especial para o embaixador Sá Coutinho, nosso anjo da guarda durante as horas em que estivemos sob ameaça no aeroporto de Madrid.
A viagem até ao Aeroporto da Portela durou pouco mais de 50 minutos, ligeiramente mais rápida que o habitual já que todos nós estávamos ansiosos por dar esta aventura por terminada. Mas ainda havia muito para fazer e alguns "nós" para desatar. Por exemplo, eu guardava na minha mala de voo uma pistola e as respectivas munições e interrogava-me se à chegada iria ter coragem para mentir às autoridades portuguesas declarando que a arma não tinha balas. Mas tinha assumido um compromisso com o R e teria que o respeitar, desse lá por onde desse. Se a mentira tivesse consequências só teria que as assumir mas o importante mesmo era honrar a palavra dada, princípio sagrado de que nunca abdicaria.
O "Bissau" aterrou na pista 36 da Portela e dirigiu-se imediatamente para um lugar de estacionamento discreto longe dos olhares dos jornalistas e dos curiosos. Note-se que desde o fim da tarde da véspera a rádio e a televisão (RTP) davam frequentes informações sobre o sequestro do avião da TAP, pelo que todo o país aguardava com preocupação e ansiedade o desfecho desta crise. Quando o Boeing se imobilizou reparei que havia nada menos que seis carrinhas da PSP cheias de agentes à espera do nosso "piratinha" agora promovido à condição de inimigo público.
O primeiro a subir a bordo foi o comandante da força de polícia, o meu bem conhecido Capitão Nortadas, responsável pelo destacamento permanente da PSP no aeroporto com quem já tivera várias reuniões no âmbito da comissão FAL-SEC a que ambos pertencíamos, ele em representação das forças de segurança e eu do Sindicato dos Pilotos. Entrou no avião, cumprimentou os tripulantes, deixou para mim um rápido "ah, era você?" e de seguida convidou o R a acompanhá-lo, ao que este acedeu de pronto.
- Então, e a arma?, perguntou.
- Está aqui, senhor Capitão, respondi.
Dito isto entreguei-lhe a pistola que tinha em meu poder. Olhou-a com cuidado, mexeu, remexeu e depois perguntou:
- Então e as munições?
- Não tinha, senhor Capitão, menti descaradamente.
- Não tinha??? Tem a certeza do que está a dizer?
- Absoluta. O rapaz não queria fazer mal a ninguém, foi só uma aventura disparatada, menti novamente com a consciência que estava a proteger alguém que durante várias horas me apontara uma arma pronta a disparar. A Síndrome de Estocolmo não parava de me apoquentar.
(Continua)
Origem do voo
O Aviador
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