José Guedes
Cmt.TAP
O PIRATINHA - parte IV (Epílogo)
Na foto com o embaixador João Sá
Coutinho (RIP) e respectivas famílias na Villa Elia, embaixada portuguesa junto
da Santa Sé, em Roma. Doze anos depois dos acontecimentos pudemos recordar
tranquilamente as horas inquietas que ambos vivemos em Madrid naquela noite de Maio
de 1980.
O embaixador João Sá Coutinho desempenhou um papel crucial na solução desta crise. Todos ficámos a dever-lhe muito.
O embaixador João Sá Coutinho desempenhou um papel crucial na solução desta crise. Todos ficámos a dever-lhe muito.
(continuação)
Terminado o sequestro procurei de imediato um telefone que me permitisse ligar para casa e tranquilizar a minha mulher que até então estava a viver uma noite de pesadelo apesar dos telefonemas frequentes de colegas e amigos que tudo tentaram para a tranquilizar. Infelizmente nem todos, porque houve alguém que teve a infeliz ideia de lhe falar em rumores que sugeriam poder tratar-se de uma acção das Brigadas Vermelhas, organização terrorista italiana que se tornara célebre dois anos antes ao ter sequestrado e assassinado o ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro. Enfim, nestas situações aparecem sempre uns curiosos a quererem dar-se importância não se apercebendo dos danos que podem estar a causar às pessoas envolvidas. Porém a esmagadora maioria dos amigos e colegas portaram-se à altura do acontecimento e vários foram aqueles que se dispuseram a fazer companhia à minha mulher durante a fase mais crítica do sequestro, mas ela tudo recusou. Permaneceu sozinha em casa apenas com a companhia da nossa filha de dois anos que dormia tranquilamente no seu quarto alheia à turbulência que naquele dia tinha tomado conta da nossa família.
No aeroporto a actividade era febril. A polícia passava o avião a pente fino enquanto que os mecânicos da TAP se ocupavam com inspecções de ordem técnica para se certificarem que nenhum sistema fora afectado. Jornalistas e repórteres de imagem acotovelavam-se literalmente para tentarem obter uma imagem ou declaração, tarefa quase impossível devido ao facto de os principais protagonistas terem sido levados para uma zona "esterilizada" do aeroporto a que ninguém tinha acesso. Ao fim de alguns minutos de repouso a tripulação dirigiu-se para o "debriefing" que sempre se realiza após a um acontecimento deste tipo. Iríamos fazer um primeiro relato do sucedido às autoridades e entidades envolvidas. Lembro-me que fomos literalmente escoltados até uma espécie de sala de conferências onde além dos responsáveis pela segurança do aeroporto estavam presentes o presidente e alguns administradores da TAP, elementos das Relações Públicas, do Controle de Tráfego Aéreo e da Direcção de Operações de Voo, nessa altura chefiada pelo nosso muito respeitado Comandante Hugo Damásio. Recordo que nesta altura a situação económica da TAP era verdadeiramente catastrófica devido a uma série de greves mais ou menos selvagens, a última das quais levou à intervenção do Presidente da República, General Ramalho Eanes, no sentido de evitar o encerramento da companhia. Este processo estava a ser seriamente ponderado pelo governo de então através do seu Ministro dos Transportes, eng.º Viana Baptista, curiosamente o responsável pelo Departamento de Manutenção e Engenharia da TAP até à sua chamada para o Executivo. Tudo isto para dizer que em 1980 a opinião pública estava muito desagradada com o caminho que a TAP estava a seguir devido à enorme quantidade de greves que marcaram esse período e à degradação da situação financeira da companhia que obrigava a constantes financiamentos por parte do Estado. Estava portanto na hora de a TAP proporcionar aos portugueses uma história com um final feliz e o caso do "piratinha" poderia muito bem servir para esse fim.
Só que… Só que de repente tive um choque com a realidade e comecei a pensar se não teria ido longe de mais na minha recém descoberta vocação para mediador de conflitos. De facto, ao apresentar-me perante a ilustre assembleia de responsáveis como o suposto herói da noite, condição que me facultaria (como facultou) uma boa dose de felicitações e aplausos, estava também a assumir uma elevada dose de responsabilidade que poderia causar-me, como causou, alguns dissabores. Tudo isto para dizer que quando chegou o momento de perguntar à ilustre assembleia "Então e agora, que faço às balas?" fez-se um profundo silêncio na sala. Ninguém se ofereceu para me dar cobertura naquela negociação. Os responsáveis pela TAP deram-me muitas palmadinhas nas costas mas lá iam dizendo que a empresa nada tinha a ver com o assunto. Se eu tinha dito à polícia que a arma não estava carregada não podia ser a administração da companhia a esconder tais provas só para me proteger. Fazia todo o sentido. Teria que ser eu a assumir as consequências, boas e más, das promessas que fizera ao R. Da parte das forças de segurança, como esperava, também ninguém se "chegou à frente" pelo que rapidamente me apercebi que estava metido num belo sarilho. O sequestro tinha terminado mas as minhas preocupações estavam ainda longe do fim. Em resumo, terminada a reunião dei comigo a caminho de casa, alta madrugada, com seis balas calibre 6,35 no bolso do casaco da farda. Que raio de ideia.
Quando cheguei ao apartamento onde morava, o meu primeiro gesto foi, obviamente, o forte abraço de alívio que troquei com minha mulher. Mas não durou muito.
- Espera aí um pouquinho. Tenho que fazer um telefonema urgente.
- Um telefonema urgente? A esta hora? Para quem?
- Prometi ao miúdo (sic) que quando chegasse a casa iria ligar para a mãe dele a explicar o que aconteceu. É que o R nunca passou uma noite fora, a mãe deve estar preocupada.
- A mãe dele está preocupada? Então … e eu???
- Tem calma, já te conto tudo. Agora tenho uma promessa para cumprir.
E pronto, lá fui para o telefone fazer a chamada mais bizarra de toda a minha vida. Era alta madrugada e certamente a destinatária do telefonema dormia profundamente alheia às trapalhadas em que o filho se tinha envolvido
- Bom dia. É de casa da dona M?
- Aa… Bom dia. Mas quem fala? Sabe que horas são?
- Peço desculpa, minha senhora, mas tenho um recado urgente do seu filho R.
- Do R? Mas que se passa? Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu mas ele está bem, não se preocupe.
- Ai meu Deus. Que fez o R?
- Vou ser muito rápido. O meu nome é José Guedes, sou piloto da TAP e ao início desta noite o seu filho assaltou o meu avião.
- O quê? O senhor deve estar é bêbado. O meu filho nunca passou uma noite fora de casa, foi lá agora assaltar um avião.
- É verdade. Ligue o rádio e ouça as notícias. O R está bem mas foi detido pela polícia. Ele não feriu ninguém mas vai ter um problema muito sério para resolver.
Desliguei o telefone e a partir daí a minha atenção concentrou-se em exclusivo na família. Dormir? Impossível, tal a dose de adrenalina que me inundava o corpo. Uma pena porque sabia que no dia seguinte não iriam faltar motivos de excitação. Os jornais iam querer saber tudo o que aconteceu e eu sabia que pelo menos o meu amigo Benjamim Formigo, o já referido jornalista do Expresso, não me iria largar enquanto não lhe desse o exclusivo da história, como acabou por acontecer. Mas teria que ter também a prometida conversa com o meu pai, juiz do Supremo, para lhe pedir que usasse da sua influência para que o R pudesse ter uma nova oportunidade (claro que ele nunca faria isso, mas eu tinha prometido que lhe falava) mas também para me aconselhar sobre o destino a dar às balas que guardava agora em minha casa. Mal sabia eu o que me esperava.
Descansei um par de horas e logo que pude liguei para casa dos meus pais em Vila do Conde à espera que do outro lado da linha viessem palavras de orgulho e aplauso. Ao fim e ao cabo tinha sido o filho deles quem mais contribuíra para solucionar a crise do avião sequestrado, folhetim que foi seguido em directo pelas rádios e televisão (só havia uma…), a notícia mais sensacional de um ano já de si rico em (más) notícias. Mas não foi nada disso que aconteceu. Quando contei ao Meritíssimo os detalhes da negociação tive como resposta um ataque de fúria:
- O quê? Tu ficaste com as balas??? Mas isso é um enorme disparate!
Ao ouvir isto senti-me novamente com 14 anos depois de ter partido a janela do vizinho com mais uma bola mal dominada.
- Mas a estratégia resultou, o tipo entregou-se, respondi a medo já pouco convencido dos méritos da minha façanha.
- Mas mentiste à Polícia e estás a fazer ocultação de provas. Isso é muito grave.
Bolas. O que me havia de acontecer. Eu que pensava que tinha engendrado uma estratégia genial para resolver o sequestro estava agora metido num rico sarilho. Qual Síndrome de Estocolmo qual nada, quando chegasse o momento da verdade os juízes e a polícia não iriam querer saber dessas teorias para nada.
- E que devo fazer então, meu pai?
- O óbvio. Vais imediatamente à Polícia Judiciária, pedes para falar com o responsável pelo caso e entregas as balas. Pede desculpa pela omissão, diz que foi só uma tentativa para resolver o problema. Pode ser que te perdoem.
Dito e feito, passado menos de uma hora sobre este telefonema estava eu na sede da Polícia Judiciária a falar com o inspector que tratava do assunto. Quando disse ao que ia ele sorriu placidamente e disse:
-As balas? Já sabíamos. O rapaz contou tudo. Mas fez bem em vir cá falar connosco. Sendo assim não haverá qualquer problema.
Ufff! Que alívio. Agora só faltava falar com o Capitão Nortadas e pedir-lhe desculpa por lhe ter mentido. Mas ele havia de compreender. Mais tarde iria falar com ele ao aeroporto, não era urgente.
Mas se eu pensava que o assunto estava encerrado estava redondamente enganado. A novela iria continuar e os episódios seguintes prometiam forte excitação. Vejamos então.
Dois dias depois do incidente uma voz masculina ligou para nossa casa, atendeu a minha mulher:
- Daqui fala o pai do amigo do seu marido
- O pai do amigo do meu marido?
- Sim, o pai do R. Ele está detido no Estabelecimento Prisional de Lisboa (Penitenciária) e quer muito falar com o senhor Guedes.
Quando cheguei a casa vindo de um voo qualquer fui confrontado com o estranho telefonema. O indivíduo que ligou tinha deixado o seu contacto e pedia urgência na resposta. Achei tudo aquilo bastante estranho mas resolvi levar o telefonema a sério. Para me proteger fui imediatamente contar aos meus superiores hierárquicos o que estava a acontecer e pedir conselho. Depois de um breve contacto com o inspector da Judiciária que se ocupava do caso a minha chefia decidiu que eu deveria aceitar o convite para visitar o R na prisão. Toda a gente achava que esta história estava muito mal contada e deveria haver qualquer coisa escondida. Se o R fazia questão em falar a sós comigo na prisão é porque teria algo de muito importante para dizer. Era o que toda a gente pensava, eu incluído.
No dia e hora combinados lá fui eu visitar o R na Penitenciária. O pai dele acompanhou-me até à porta e quando lhe perguntei se podia estar descansado ele respondeu que tinha tratado de tudo; alguém iria acompanhar-me até ao local do encontro. Comigo levava um livro que tinha comprado na Buchholz para oferecer ao detido. Ao fim e ao cabo o R iria agora ter muito tempo disponível e eu suspeitava que ele gostava de ler. Seja como for, este improvável episódio vinha lembrar-me uma vez mais que a Síndrome de Estocolmo continuava a funcionar em pleno e que dificilmente me veria livre dela.
O encontro foi rápido e não trouxe nada de novo. O R queria apenas agradecer a forma como lidei com a sua disparatada aventura e pedir-me que o não abandonasse. Agradeceu o livro que lhe ofereci e pediu-me que lhe levasse mais.
- Mas tu estás maluco, ou quê?, perguntei. Queres que eu volte aqui? Já imaginaste o que aconteceria se alguém soubesse que piloto e assaltante se encontraram para conversar numa cadeia de Lisboa?
Confesso que fiquei um bocado frustrado com esta visita e não a iria repetir acontecesse o que acontecesse. Era demasiado arriscado e não fazia qualquer sentido. Não havia mais ninguém envolvido no sequestro, como a princípio se receou, e agora era deixar que as coisas corressem naturalmente para que a Justiça cumprisse a sua missão.
Até que alguns meses mais tarde aconteceu algo que eu colocaria no topo do "ranking" dos episódios improváveis que envolveram este incidente já de si bastante caricato. Na altura dos factos eu aproveitava os intervalos dos voos para frequentar um curso de jornalismo no Instituto de Formação Social e do Trabalho que era dirigido por um chileno fugido do regime de Pinochet. Por vezes dei comigo a pensar que talvez o curso fosse financiado pelo PCP para ajudar os refugiados do Chile mas nada disso me incomodava. Eu queria mesmo era saber como se fazia um jornal e pouco me importava que fosse o PCP ou o CDS a pagar a conta. Acontece que era preciso estudar bastante e era isso mesmo que um belo dia eu fazia em minha casa na companhia do meu amigo Jorge Soares, também ele aprendiz de jornalista. Ao fim da tarde tocou a campainha. Fui abrir a porta intrigado com tão tardia visita, ainda por cima perto da hora de jantar. Quando o vi não quis acreditar. Era o R em pessoa, acabado de deixar a Penitenciária após ter cumprido o período limite de prisão preventiva. Vinha sorridente e bem vestido, bonito mesmo, fazendo jus ao seu recente estatuto de celebridade nacional, consequência das muitas entrevistas que deu a vários órgãos de informação e do movimento de solidariedade que tal como esperava se gerou à sua volta neste país de tão brandos costumes. Tinha feito a viagem de comboio até Carcavelos e alguns passageiros, jovens principalmente, reconheceram-no e pediam autógrafos. Só mesmo em Portugal.
- Que fazes aqui?, perguntei.
- Venho dar-te mais um abraço de agradecimento e pedir desculpa à tua mulher pelo mau bocado que a fiz passar.
E assim foi. Só que desta vez levou com um belo discurso da dona da casa, professora do ensino oficial e por tal motivo habituada a lidar com adolescentes problemáticos. É que ela não gostou mesmo nada daquela noite em que o marido foi sequestrado juntamente com quase mais uma centena de pessoas.
Entretanto conversa puxa conversa, o tempo ia passando e começava a anoitecer. Foi então que tive mais uma ideia algo bizarra:
- Olha, R, não estávamos a contar contigo para jantar mas não faz mal, vamos esticar o que temos. É só colocar mais um prato na mesa e jantas connosco.
- OK, obrigado, respondeu o R sem qualquer hesitação.
Foi então a vez do meu amigo e colega de estudos jornalísticos , Jorge Soares, comentar em surdina:
- Não, isto não está a acontecer. Vou jantar com o assaltante e o assaltado do avião da TAP na casa deste último como se nada tivesse acontecido? Não é possível. Devo andar a trabalhar demasiado. Preciso de férias .
Mas era verdade. Jantámos os quatro e falámos de tudo um pouco excepto do incidente que fez com que as nossas vidas se cruzassem. Quando lhe perguntei que planos tinha para o futuro R respondeu que pensava tirar o curso de Direito e casar quando encontrasse a pessoa certa. Obviamente eu seria o padrinho. Nunca aconteceu. O padrinho, pelo menos. O casamento não sei.
Tudo muito bonito mas faltava um detalhe muito importante, o julgamento. O caso tinha despertado interesse em todo o país, as opiniões dividiam-se em relação ao castigo a dar ao jovem e acima de tudo faltava saber o que pensavam os juízes que iriam ter o processo a seu cargo. Mas tudo parecia encaminhar-se para uma solução relativamente benigna. Consciente do sentimento de perdão que se apoderou da sociedade portuguesa em relação a este caso a TAP decidiu não apresentar queixa contra o R e assumiu voluntariamente todas as despesas provocadas pelo incidente. Uma vez mais veio ao de cima a generosidade da nossa companhia aérea, sempre pronta a pagar pelos erros dos outros. Não admira que esteja falida há mais de quarenta anos.
Por razões que desconheço mas que suspeito prenderem-se com a estratégia seguida pela TAP o Comandante do serviço não compareceu ao julgamento, ficando portanto a meu cargo a missão de representar os ofendidos. Como se esperava (lá voltamos à Síndrome de Estocolmo…) fui ao tribunal dizer que o R era um jovem inteligente e bem formado, só que temporariamente perturbado por um espírito inquieto que o levou a não medir correctamente as consequências do seu acto. Disse também que nunca senti que a minha vida e a de todos os outros ocupantes do avião estivesse objectivamente em perigo. A pistola existia, estava carregada, mas o R não iria nunca disparar. Pelo menos era essa a minha convicção. Além disso ao longo das horas que passámos no avião eu apercebi-me que ele era um jovem cheio de potencial, com uma capacidade intelectual acima da média e um leque de interesses bastante invulgar para a sua idade. Seria uma pena se o futuro deste rapaz ficasse comprometido por causa de um erro de juventude.
O Ministério Público rapidamente percebeu que eu me tinha passado para o lado da defesa e que não poderia contar comigo para exigir um castigo exemplar para o nosso "pirata do ar" fracassado. Parecia haver um acordo tácito entre todas as partes envolvidas no sentido de "vamos lá dar uma hipótese ao rapaz e fingir que isto não teve a gravidade que de facto teve." E assim foi. No final do julgamento o juiz decidiu que o R era culpado, merecia castigo, mas a pena ficaria suspensa por dois anos.
Terá valido a pena. A partir de então não voltei a ter contactos com o R mas sei que a vida lhe correu bem e que a história do assalto ao avião está bem guardada num qualquer recanto da sua memória. Não gosta de reviver o episódio e eu compreendo isso muito bem.
Pela parte que me toca também precisei de mais de trinta e cinco anos para me decidir a contar esta história com todos os detalhes. Ou pelo menos com aqueles de que ainda me lembro.
Propositadamente, para salvaguardar a sua privacidade, omiti os nomes de todos os protagonistas que se encontravam no interior do avião, tornando este relato numa visão meramente pessoal. Admito que passados todos estes anos a história por mim contada possa conter uma ou outra inconsistência mas acredito que no essencial reflecte aquilo que aconteceu naquela extraordinária noite de 6 de Maio de 1980.
Uma última nota. Trinta e cinco anos depois dos acontecimentos o Benjamim Formigo lembrou-me que quando lhe dei o exclusivo da história para publicação no Expresso lhe dei também uma das balas. É verdade. No meio da confusão do "dia seguinte" devo ter-me esquecido dela em qualquer lado.
Terminado o sequestro procurei de imediato um telefone que me permitisse ligar para casa e tranquilizar a minha mulher que até então estava a viver uma noite de pesadelo apesar dos telefonemas frequentes de colegas e amigos que tudo tentaram para a tranquilizar. Infelizmente nem todos, porque houve alguém que teve a infeliz ideia de lhe falar em rumores que sugeriam poder tratar-se de uma acção das Brigadas Vermelhas, organização terrorista italiana que se tornara célebre dois anos antes ao ter sequestrado e assassinado o ex-primeiro ministro italiano Aldo Moro. Enfim, nestas situações aparecem sempre uns curiosos a quererem dar-se importância não se apercebendo dos danos que podem estar a causar às pessoas envolvidas. Porém a esmagadora maioria dos amigos e colegas portaram-se à altura do acontecimento e vários foram aqueles que se dispuseram a fazer companhia à minha mulher durante a fase mais crítica do sequestro, mas ela tudo recusou. Permaneceu sozinha em casa apenas com a companhia da nossa filha de dois anos que dormia tranquilamente no seu quarto alheia à turbulência que naquele dia tinha tomado conta da nossa família.
No aeroporto a actividade era febril. A polícia passava o avião a pente fino enquanto que os mecânicos da TAP se ocupavam com inspecções de ordem técnica para se certificarem que nenhum sistema fora afectado. Jornalistas e repórteres de imagem acotovelavam-se literalmente para tentarem obter uma imagem ou declaração, tarefa quase impossível devido ao facto de os principais protagonistas terem sido levados para uma zona "esterilizada" do aeroporto a que ninguém tinha acesso. Ao fim de alguns minutos de repouso a tripulação dirigiu-se para o "debriefing" que sempre se realiza após a um acontecimento deste tipo. Iríamos fazer um primeiro relato do sucedido às autoridades e entidades envolvidas. Lembro-me que fomos literalmente escoltados até uma espécie de sala de conferências onde além dos responsáveis pela segurança do aeroporto estavam presentes o presidente e alguns administradores da TAP, elementos das Relações Públicas, do Controle de Tráfego Aéreo e da Direcção de Operações de Voo, nessa altura chefiada pelo nosso muito respeitado Comandante Hugo Damásio. Recordo que nesta altura a situação económica da TAP era verdadeiramente catastrófica devido a uma série de greves mais ou menos selvagens, a última das quais levou à intervenção do Presidente da República, General Ramalho Eanes, no sentido de evitar o encerramento da companhia. Este processo estava a ser seriamente ponderado pelo governo de então através do seu Ministro dos Transportes, eng.º Viana Baptista, curiosamente o responsável pelo Departamento de Manutenção e Engenharia da TAP até à sua chamada para o Executivo. Tudo isto para dizer que em 1980 a opinião pública estava muito desagradada com o caminho que a TAP estava a seguir devido à enorme quantidade de greves que marcaram esse período e à degradação da situação financeira da companhia que obrigava a constantes financiamentos por parte do Estado. Estava portanto na hora de a TAP proporcionar aos portugueses uma história com um final feliz e o caso do "piratinha" poderia muito bem servir para esse fim.
Só que… Só que de repente tive um choque com a realidade e comecei a pensar se não teria ido longe de mais na minha recém descoberta vocação para mediador de conflitos. De facto, ao apresentar-me perante a ilustre assembleia de responsáveis como o suposto herói da noite, condição que me facultaria (como facultou) uma boa dose de felicitações e aplausos, estava também a assumir uma elevada dose de responsabilidade que poderia causar-me, como causou, alguns dissabores. Tudo isto para dizer que quando chegou o momento de perguntar à ilustre assembleia "Então e agora, que faço às balas?" fez-se um profundo silêncio na sala. Ninguém se ofereceu para me dar cobertura naquela negociação. Os responsáveis pela TAP deram-me muitas palmadinhas nas costas mas lá iam dizendo que a empresa nada tinha a ver com o assunto. Se eu tinha dito à polícia que a arma não estava carregada não podia ser a administração da companhia a esconder tais provas só para me proteger. Fazia todo o sentido. Teria que ser eu a assumir as consequências, boas e más, das promessas que fizera ao R. Da parte das forças de segurança, como esperava, também ninguém se "chegou à frente" pelo que rapidamente me apercebi que estava metido num belo sarilho. O sequestro tinha terminado mas as minhas preocupações estavam ainda longe do fim. Em resumo, terminada a reunião dei comigo a caminho de casa, alta madrugada, com seis balas calibre 6,35 no bolso do casaco da farda. Que raio de ideia.
Quando cheguei ao apartamento onde morava, o meu primeiro gesto foi, obviamente, o forte abraço de alívio que troquei com minha mulher. Mas não durou muito.
- Espera aí um pouquinho. Tenho que fazer um telefonema urgente.
- Um telefonema urgente? A esta hora? Para quem?
- Prometi ao miúdo (sic) que quando chegasse a casa iria ligar para a mãe dele a explicar o que aconteceu. É que o R nunca passou uma noite fora, a mãe deve estar preocupada.
- A mãe dele está preocupada? Então … e eu???
- Tem calma, já te conto tudo. Agora tenho uma promessa para cumprir.
E pronto, lá fui para o telefone fazer a chamada mais bizarra de toda a minha vida. Era alta madrugada e certamente a destinatária do telefonema dormia profundamente alheia às trapalhadas em que o filho se tinha envolvido
- Bom dia. É de casa da dona M?
- Aa… Bom dia. Mas quem fala? Sabe que horas são?
- Peço desculpa, minha senhora, mas tenho um recado urgente do seu filho R.
- Do R? Mas que se passa? Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu mas ele está bem, não se preocupe.
- Ai meu Deus. Que fez o R?
- Vou ser muito rápido. O meu nome é José Guedes, sou piloto da TAP e ao início desta noite o seu filho assaltou o meu avião.
- O quê? O senhor deve estar é bêbado. O meu filho nunca passou uma noite fora de casa, foi lá agora assaltar um avião.
- É verdade. Ligue o rádio e ouça as notícias. O R está bem mas foi detido pela polícia. Ele não feriu ninguém mas vai ter um problema muito sério para resolver.
Desliguei o telefone e a partir daí a minha atenção concentrou-se em exclusivo na família. Dormir? Impossível, tal a dose de adrenalina que me inundava o corpo. Uma pena porque sabia que no dia seguinte não iriam faltar motivos de excitação. Os jornais iam querer saber tudo o que aconteceu e eu sabia que pelo menos o meu amigo Benjamim Formigo, o já referido jornalista do Expresso, não me iria largar enquanto não lhe desse o exclusivo da história, como acabou por acontecer. Mas teria que ter também a prometida conversa com o meu pai, juiz do Supremo, para lhe pedir que usasse da sua influência para que o R pudesse ter uma nova oportunidade (claro que ele nunca faria isso, mas eu tinha prometido que lhe falava) mas também para me aconselhar sobre o destino a dar às balas que guardava agora em minha casa. Mal sabia eu o que me esperava.
Descansei um par de horas e logo que pude liguei para casa dos meus pais em Vila do Conde à espera que do outro lado da linha viessem palavras de orgulho e aplauso. Ao fim e ao cabo tinha sido o filho deles quem mais contribuíra para solucionar a crise do avião sequestrado, folhetim que foi seguido em directo pelas rádios e televisão (só havia uma…), a notícia mais sensacional de um ano já de si rico em (más) notícias. Mas não foi nada disso que aconteceu. Quando contei ao Meritíssimo os detalhes da negociação tive como resposta um ataque de fúria:
- O quê? Tu ficaste com as balas??? Mas isso é um enorme disparate!
Ao ouvir isto senti-me novamente com 14 anos depois de ter partido a janela do vizinho com mais uma bola mal dominada.
- Mas a estratégia resultou, o tipo entregou-se, respondi a medo já pouco convencido dos méritos da minha façanha.
- Mas mentiste à Polícia e estás a fazer ocultação de provas. Isso é muito grave.
Bolas. O que me havia de acontecer. Eu que pensava que tinha engendrado uma estratégia genial para resolver o sequestro estava agora metido num rico sarilho. Qual Síndrome de Estocolmo qual nada, quando chegasse o momento da verdade os juízes e a polícia não iriam querer saber dessas teorias para nada.
- E que devo fazer então, meu pai?
- O óbvio. Vais imediatamente à Polícia Judiciária, pedes para falar com o responsável pelo caso e entregas as balas. Pede desculpa pela omissão, diz que foi só uma tentativa para resolver o problema. Pode ser que te perdoem.
Dito e feito, passado menos de uma hora sobre este telefonema estava eu na sede da Polícia Judiciária a falar com o inspector que tratava do assunto. Quando disse ao que ia ele sorriu placidamente e disse:
-As balas? Já sabíamos. O rapaz contou tudo. Mas fez bem em vir cá falar connosco. Sendo assim não haverá qualquer problema.
Ufff! Que alívio. Agora só faltava falar com o Capitão Nortadas e pedir-lhe desculpa por lhe ter mentido. Mas ele havia de compreender. Mais tarde iria falar com ele ao aeroporto, não era urgente.
Mas se eu pensava que o assunto estava encerrado estava redondamente enganado. A novela iria continuar e os episódios seguintes prometiam forte excitação. Vejamos então.
Dois dias depois do incidente uma voz masculina ligou para nossa casa, atendeu a minha mulher:
- Daqui fala o pai do amigo do seu marido
- O pai do amigo do meu marido?
- Sim, o pai do R. Ele está detido no Estabelecimento Prisional de Lisboa (Penitenciária) e quer muito falar com o senhor Guedes.
Quando cheguei a casa vindo de um voo qualquer fui confrontado com o estranho telefonema. O indivíduo que ligou tinha deixado o seu contacto e pedia urgência na resposta. Achei tudo aquilo bastante estranho mas resolvi levar o telefonema a sério. Para me proteger fui imediatamente contar aos meus superiores hierárquicos o que estava a acontecer e pedir conselho. Depois de um breve contacto com o inspector da Judiciária que se ocupava do caso a minha chefia decidiu que eu deveria aceitar o convite para visitar o R na prisão. Toda a gente achava que esta história estava muito mal contada e deveria haver qualquer coisa escondida. Se o R fazia questão em falar a sós comigo na prisão é porque teria algo de muito importante para dizer. Era o que toda a gente pensava, eu incluído.
No dia e hora combinados lá fui eu visitar o R na Penitenciária. O pai dele acompanhou-me até à porta e quando lhe perguntei se podia estar descansado ele respondeu que tinha tratado de tudo; alguém iria acompanhar-me até ao local do encontro. Comigo levava um livro que tinha comprado na Buchholz para oferecer ao detido. Ao fim e ao cabo o R iria agora ter muito tempo disponível e eu suspeitava que ele gostava de ler. Seja como for, este improvável episódio vinha lembrar-me uma vez mais que a Síndrome de Estocolmo continuava a funcionar em pleno e que dificilmente me veria livre dela.
O encontro foi rápido e não trouxe nada de novo. O R queria apenas agradecer a forma como lidei com a sua disparatada aventura e pedir-me que o não abandonasse. Agradeceu o livro que lhe ofereci e pediu-me que lhe levasse mais.
- Mas tu estás maluco, ou quê?, perguntei. Queres que eu volte aqui? Já imaginaste o que aconteceria se alguém soubesse que piloto e assaltante se encontraram para conversar numa cadeia de Lisboa?
Confesso que fiquei um bocado frustrado com esta visita e não a iria repetir acontecesse o que acontecesse. Era demasiado arriscado e não fazia qualquer sentido. Não havia mais ninguém envolvido no sequestro, como a princípio se receou, e agora era deixar que as coisas corressem naturalmente para que a Justiça cumprisse a sua missão.
Até que alguns meses mais tarde aconteceu algo que eu colocaria no topo do "ranking" dos episódios improváveis que envolveram este incidente já de si bastante caricato. Na altura dos factos eu aproveitava os intervalos dos voos para frequentar um curso de jornalismo no Instituto de Formação Social e do Trabalho que era dirigido por um chileno fugido do regime de Pinochet. Por vezes dei comigo a pensar que talvez o curso fosse financiado pelo PCP para ajudar os refugiados do Chile mas nada disso me incomodava. Eu queria mesmo era saber como se fazia um jornal e pouco me importava que fosse o PCP ou o CDS a pagar a conta. Acontece que era preciso estudar bastante e era isso mesmo que um belo dia eu fazia em minha casa na companhia do meu amigo Jorge Soares, também ele aprendiz de jornalista. Ao fim da tarde tocou a campainha. Fui abrir a porta intrigado com tão tardia visita, ainda por cima perto da hora de jantar. Quando o vi não quis acreditar. Era o R em pessoa, acabado de deixar a Penitenciária após ter cumprido o período limite de prisão preventiva. Vinha sorridente e bem vestido, bonito mesmo, fazendo jus ao seu recente estatuto de celebridade nacional, consequência das muitas entrevistas que deu a vários órgãos de informação e do movimento de solidariedade que tal como esperava se gerou à sua volta neste país de tão brandos costumes. Tinha feito a viagem de comboio até Carcavelos e alguns passageiros, jovens principalmente, reconheceram-no e pediam autógrafos. Só mesmo em Portugal.
- Que fazes aqui?, perguntei.
- Venho dar-te mais um abraço de agradecimento e pedir desculpa à tua mulher pelo mau bocado que a fiz passar.
E assim foi. Só que desta vez levou com um belo discurso da dona da casa, professora do ensino oficial e por tal motivo habituada a lidar com adolescentes problemáticos. É que ela não gostou mesmo nada daquela noite em que o marido foi sequestrado juntamente com quase mais uma centena de pessoas.
Entretanto conversa puxa conversa, o tempo ia passando e começava a anoitecer. Foi então que tive mais uma ideia algo bizarra:
- Olha, R, não estávamos a contar contigo para jantar mas não faz mal, vamos esticar o que temos. É só colocar mais um prato na mesa e jantas connosco.
- OK, obrigado, respondeu o R sem qualquer hesitação.
Foi então a vez do meu amigo e colega de estudos jornalísticos , Jorge Soares, comentar em surdina:
- Não, isto não está a acontecer. Vou jantar com o assaltante e o assaltado do avião da TAP na casa deste último como se nada tivesse acontecido? Não é possível. Devo andar a trabalhar demasiado. Preciso de férias .
Mas era verdade. Jantámos os quatro e falámos de tudo um pouco excepto do incidente que fez com que as nossas vidas se cruzassem. Quando lhe perguntei que planos tinha para o futuro R respondeu que pensava tirar o curso de Direito e casar quando encontrasse a pessoa certa. Obviamente eu seria o padrinho. Nunca aconteceu. O padrinho, pelo menos. O casamento não sei.
Tudo muito bonito mas faltava um detalhe muito importante, o julgamento. O caso tinha despertado interesse em todo o país, as opiniões dividiam-se em relação ao castigo a dar ao jovem e acima de tudo faltava saber o que pensavam os juízes que iriam ter o processo a seu cargo. Mas tudo parecia encaminhar-se para uma solução relativamente benigna. Consciente do sentimento de perdão que se apoderou da sociedade portuguesa em relação a este caso a TAP decidiu não apresentar queixa contra o R e assumiu voluntariamente todas as despesas provocadas pelo incidente. Uma vez mais veio ao de cima a generosidade da nossa companhia aérea, sempre pronta a pagar pelos erros dos outros. Não admira que esteja falida há mais de quarenta anos.
Por razões que desconheço mas que suspeito prenderem-se com a estratégia seguida pela TAP o Comandante do serviço não compareceu ao julgamento, ficando portanto a meu cargo a missão de representar os ofendidos. Como se esperava (lá voltamos à Síndrome de Estocolmo…) fui ao tribunal dizer que o R era um jovem inteligente e bem formado, só que temporariamente perturbado por um espírito inquieto que o levou a não medir correctamente as consequências do seu acto. Disse também que nunca senti que a minha vida e a de todos os outros ocupantes do avião estivesse objectivamente em perigo. A pistola existia, estava carregada, mas o R não iria nunca disparar. Pelo menos era essa a minha convicção. Além disso ao longo das horas que passámos no avião eu apercebi-me que ele era um jovem cheio de potencial, com uma capacidade intelectual acima da média e um leque de interesses bastante invulgar para a sua idade. Seria uma pena se o futuro deste rapaz ficasse comprometido por causa de um erro de juventude.
O Ministério Público rapidamente percebeu que eu me tinha passado para o lado da defesa e que não poderia contar comigo para exigir um castigo exemplar para o nosso "pirata do ar" fracassado. Parecia haver um acordo tácito entre todas as partes envolvidas no sentido de "vamos lá dar uma hipótese ao rapaz e fingir que isto não teve a gravidade que de facto teve." E assim foi. No final do julgamento o juiz decidiu que o R era culpado, merecia castigo, mas a pena ficaria suspensa por dois anos.
Terá valido a pena. A partir de então não voltei a ter contactos com o R mas sei que a vida lhe correu bem e que a história do assalto ao avião está bem guardada num qualquer recanto da sua memória. Não gosta de reviver o episódio e eu compreendo isso muito bem.
Pela parte que me toca também precisei de mais de trinta e cinco anos para me decidir a contar esta história com todos os detalhes. Ou pelo menos com aqueles de que ainda me lembro.
Propositadamente, para salvaguardar a sua privacidade, omiti os nomes de todos os protagonistas que se encontravam no interior do avião, tornando este relato numa visão meramente pessoal. Admito que passados todos estes anos a história por mim contada possa conter uma ou outra inconsistência mas acredito que no essencial reflecte aquilo que aconteceu naquela extraordinária noite de 6 de Maio de 1980.
Uma última nota. Trinta e cinco anos depois dos acontecimentos o Benjamim Formigo lembrou-me que quando lhe dei o exclusivo da história para publicação no Expresso lhe dei também uma das balas. É verdade. No meio da confusão do "dia seguinte" devo ter-me esquecido dela em qualquer lado.
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