quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Voo 3564 O MEU TESTEMUNHO.




Nuno Almeida Poeta)
Esp.MMA
Lisboa
Aquando da feitura do livro sobre as enfermeiras paraquedistas, em 2012, escrevi este testemunho, enviado à sra. enfermeira Rosa Serra, para que fosse incluído no mesmo.
Por opção do editor, tal não foi concluído.
Aqui deixo este meu testemunho enaltecendo a bravura e coragem dessas mulheres.
Queridas companheiras de tempos de dor mas também de alegrias, relato dois episódios que me marcaram muito e que foram vividos com a presença de uma de vós.
A 1ª foi quando da minha primeira saída para uma evacuação.
Aterrámos, saltei com a maca na mão e de imediato me colocaram nela um homem com o ventre todo aberto e a esvair-se em sangue. Colocado no heli a enfermeira começa de imediato a procurar-lhe veias e a injectá-lo, tentando aliviar-lhe as dores e mantê-lo vivo até ao Hospital. Eu via tudo aquilo desenrolar-se perante os meus olhos incrédulos para tanto horror e estupefacção perante a calma, aparentemente serena, com que ela acertava nas veias, apesar da vibração do heli e das convulsões que o ferido exibia.
A determinado momento, o ferido com um rosto que nunca esquecerei, pálido, olhos semicerrados e revirados para cima, aperta na mão uma medalha, que trazia pendurada num fio ao pescoço, com uma foto esmaltada de uma mulher e uma criança, e beija-a dizendo: “ adeus minhas queridas que nunca mais vos vejo”.
Impotente perante a situação curvo-me e toco-lhe no peito dizendo-lhe: “não digas isso que estamos mesmo a chegar ao hospital”. Ele põe a medalha na boca, morde-a e, com as duas mãos agarra-me no pulso, revira os olhos e tomba a cabeça para o lado.
Os últimos minutos, até aterrar no hospital, foram feitos com aquelas mãos fortemente cerradas no meu pulso, eu chorando compulsivamente, e a enfermeira dando conta que todo o seu esforço e luta para roubar aquele homem das garras da morte tinham sido em vão.
Apesar do desfecho infeliz, que certamente a não deixou dormir tranquila naquela noite, tal como a mim, nos dias seguintes lá estava ela a lutar novamente, com toda a sua determinação, para que uma vida fosse salva e fizesse valer a pena todo o esforço e determinação empreendidos.
A 2ª foi numa operação com comandos africanos em Teixeira Pinto.
Transportámos as tropas até uma área determinada no mato e regressámos ao aquartelamento aguardando ordens para mais tarde, após o seu confronto com o inimigo, recolher os elementos transportados.
Estávamos a meio da operação quando recebemos ordens para levantar voo e evacuar um nosso elemento que estaria ferido.
Dirigimo-nos ao local e ao aterrar, quando me preparo para saltar com a maca, vejo um comando africano, alto e esguio no seu camuflado, dirigir-se, pelo seu próprio pé, ao heli, com a sua arma numa mão e um saco de pano na outra, e com aspecto de estar em transe hipnótico.
Abro a porta do heli e desço para o terreno para lhe abrir a porta lateral traseira, mas ele entra e senta-se no meu lugar, com um ar muito hipnótico e a transpirar desalmadamente, e coloca o saco de pano, tipo daqueles de ir ao pão, com atilho na boca do saco, entre a cadeira onde se sentou e a da enfermeira.
Eu, privado do meu assento, entro para a parte de trás e sento-me nos bancos traseiros, frente à enfermeira.
Durante o voo, ela começa a fazer-me sinal que sente um cheiro forte vindo saco e interroga-me, por gestos, se sei o que será. Faço-lhe sinal que não, e ela olha para o comando que continua em estado de transe com o olhar muito distante, mas sem qualquer ferimento aparente.
Passam-se uns minutos e novamente a enfermeira me faz sinal do mau cheiro que vem do saco, e tenta com dois dedos alargar o atilho do saco, sem que o comando se aperceba. Após insistir mais um pouco logra alargar suficientemente a boca do saco e dissimuladamente curva a cabeça para espreitar o seu interior.
Subitamente ouço um grito abafado da parte dela e vejo o seu ar aterrorizado, o que me faz olhar rapidamente para o saco.
A cena é macabra, dentro do saco está a cabeça do inimigo que o comando tinha morto e que, devido à sua religião, a tinha degolado para que o espírito desse homem não o perseguisse no futuro ( ouvi essa explicação já após o entregarmos na enfermaria com febres altíssimas ).
Foi um susto que nos apanhou de surpresa e que não esqueci tão cedo. Para a enfermeira não deve ter sido fácil deparar-se com aquela cena, ainda mais que tinha os dedos a milímetros da cabeça decepada.
Espero que estes dois episódios sirvam para que melhor se compreenda o valor e a coragem das mulheres que tanto fizeram para minimizar o sofrimento de quem na guerra lutou.
Com a minha sincera e estimada consideração
Nuno Almeida “poeta” – 1º cabo MMA – Guiné Jan/Nov 1972




1 comentário:

  1. Boa tarde
    Um abraço para todos quantos participam neste blogue e uma sentida homenagem para os que já partiram.
    Não fui ao ULTRAMAR... calhou assim... era controlador de tráfego aéreo e fiquei bem classificado no curso.Ver aqui fotografias do Alf. Balacó (Rui Alfredo Balacó Moreira com o seu MG-B) do Alj. Nico (José Fernando Fernandes Nico) e do Maj. Lemos Ferreira, com quem me cruzei e convivi na BA5 em Monte Real fazem-me voltar a 6 de Janeiro de 1966 quando cheguei a Monte Real acabado de "licenciar" na "Universidade da Ota". Foram quatro dos melhores anos da minha vida ali convivi com grandes pilotos, grandes chefes e sobretudo grandes homens. Aquele com quem mais convivo é com o Sarg. Aj. Piloto Aviador João Roda (o Ventoínha ou o "mãozinhas) e por vezes com o Vitor Silva. Outros partiram recentemente o Mónica o Guerra o Godinho o Lopes outros há mais tempo como o Tuna o saudoso Amilcar Barbosa (1970 em Alcochete). Com o Roda muitas vezes falamos da guerra do ultramar e de Tete onde esteve com o Monroy com o Zagalo com o Miranda (Sargento) com o Neves com o Azambuja com o Tuna com o Mónica todos eles velhos amigos da B.A.5 entre Janeiro de 66 e Fevereiro de 69. Os Comandantes eram os saudosos SOARES DE MOURA e MOURA PINTO Comandantes da Esquadra 51 SANTOS MOREIRA e JOSE ALMEIDA BRITO. Que saudades meu Deus. Eu era Fur. Mil. OCART e havia em 1966 três Fur. Mil. Pilotos o Meca o Silva e o Cavaleiro. Quem esteve na Base em Monte Real ou pertença à 1ª incorporação de 1965 por favor contactem Tel. 933 907 772 mail simoes.baltazar@gmail.com
    Prezados amigos como dizia o "Tónio Godinho" Sarg. Aj. Pil. Aviador dos Casais de Tomar ... A PORTA ESTÁ SEMPRE ABERTA E A MESA POSTA cá vos espero
    Um abraçãp para todos
    SIMÕES BALTAZAR

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