segunda-feira, 12 de maio de 2008

O NIASSA.










209-Manuel Bastos
Ex-Fur.Mil Exército (DFA)



Se os soldados colonizadores eram tratados como escravos, como diabo seriam tratados os colonizados?



Desculpem se conto isto com sarcasmo, foi jeito que me ficou de quando era vital encobrir o medo.



A pouco e pouco os soldados foram saindo do porão. Como se o silêncio do barco os tivesse assustado, e surgiam nas aberturas do convés como zombies, que ao chegarem à luz do sol caíam fulminados. Ou então como vermes escuros, em novelos que se desenovelavam para se espalharem por todo o lado.
Com o seu aparecimento, parece ter ficado mais nítido o bafo intestinal que o Niassa exalava por aquelas cloacas abertas no convés, compondo um complexo bouquet em que se misturavam, num equilíbrio bem doseado, o aroma sulfídrico dos dejectos, o amoniacal da urina e o agridoce do vomitado; rematado com o fénico do peixe podre e o ranço da banha do rancho geral; tudo sobre uma base persististe do bolorento mofo ancestral dos porões. Era dessa atmosfera de compostagem que os soldados emergiam para o ar vibrante de luz e calor, sob um sol torrido.
Eu regresso ao interior do bar e os soldados regressam aos porões, como se tivessem posto o filme a andar para trás. Eu fujo para o conforto do bar. Os soldados fogem para o sufoco do porão; fogem de uma tortura para outra tortura.
Percebo agora o conselho cristão para oferecer a outra face; é seguramente para não nos estarem a bater sempre na mesma.
Ainda restam alguns soldados a esturricar ao sol. Estes não tiveram forças sequer para descansar a face dorida e oferecer a outra. A que missão urgente vamos nós acudir para que sejamos tratados como escravos? Será que foi por isso que o Niassa parou? Porque ficou indeciso, dado que os negreiros costumavam rumar em sentido contrário?
De repente as pessoas pararam e olharam para cima para ouvir melhor.
E de facto ouvíamos melhor.
Parece que nos tinham tirado um tampão dos ouvidos. Os motores do barco pararam, e o som que nos acompanhava desde Lisboa, de repente deixou um vazio um tanto alarmante. Depois olhámos uns para os outros e dissemos: "Os motores pararam".
Parece que dizer em voz alta aquilo que já toda a gente sabe é o suficiente para algumas pessoas se sentirem satisfeitas, dado que o jogo do King continuou numa mesa e as anedotas continuaram noutra, e até o pianista se debruçou de novo sobre o teclado, com o ar mortificado de quem cumpre a penitência de fazer sair música do piano vertical tocando nas teclas com chouriços.
Só os que não estavam a fazer nada no bar, como eu, acharam interessante vir fazer nada para a porta e olhar para o convés, onde, por qualquer razão que não consigo atinar agora, esperávamos encontrar uma explicação para aquele silêncio absurdo.
Aqui talvez seja útil informar que o navio transportava uma quantidade de militares que me é impossível referir, porque a densidade populacional a bordo era tão grande que só nos era possível ver um número reduzido de pessoas de cada vez; mas a julgar pelo número de pessoas do meu metro quadrado, o que era mesmo surpreendente, era que o barco flutuasse.
Útil também, é avisar a quem isso interessar, que um cidadão que se entrega aos desvelos de uma instituição militar de um país governado por uma minoria de tiranos sem escrúpulos, tem que estar preparado para não poder recorrer às leis que protegem os animais quando são transportados. Digo isto, porque estou certo que se a GNR multou um vizinho meu por transportar mais porcos do que a carga permitida para o seu camião, decerto não deixaria sair o Niassa do Cais de Alcântara.
Consciente da balbúrdia que seria encher o Niassa como se fosse um camião para porcos e ainda por cima fugir à GNR, quem programou aquele cruzeiro pelo Atlântico abaixo e depois pelo Índico acima dividiu tudo em camadas. A camada de cima, a dos oficiais; a camada do meio, a dos sargentos; e a camada de baixo, a dos soldados.
Curiosamente os elementos de cada camada podiam descer e deambular nas camadas inferiores, mas nunca subir; o que reflectia a tendência geral do país para o colapso, característica que ainda hoje cultivamos com mestria, e que parece indicar que o colapso não é um acidente temporal, mas sim um estado permanente.
Eu, o pianista mortificado e os displicentes jogadores de King; e mais um número estupidamente elevado de outras pessoas que não interessam agora para a história, acomodávamo-nos na camada do meio a que os tripulantes do navio chamavam "Classe Turística".
Nunca percebi se diziam isso com ironia ou com sadismo.
De entre estes, uns três ou quatro, estávamos agora como sempre, sem fazer nada; mas com a emocionante variante de estar a olhar para o convés à procura de uma resposta para a ausência do ruído dos motores do navio, contrariando a apatia geral, o que ainda assim não era uma grande demonstração de argúcia, dado que os motores se encontravam algures nos porões.
A pouco e pouco os soldados foram saindo do porão. Como se o silêncio do barco os tivesse assustado, e surgiam nas aberturas do convés como zombies, que ao chegarem à luz do sol caíam fulminados. Ou então como vermes escuros, em novelos que se desenovelavam para se espalharem por todo o lado.
Com o seu aparecimento, parece ter ficado mais nítido o bafo intestinal que o Niassa exalava por aquelas cloacas abertas no convés, compondo um complexo bouquet em que se misturavam, num equilíbrio bem doseado, o aroma sulfídrico dos dejectos, com o amoniacal da urina e o agridoce do vomitado; rematado com o fénico do peixe podre e o ranço da banha do rancho geral; tudo sobre uma base persististe do bolorento mofo ancestral dos porões. Era dessa atmosfera de compostagem que os soldados emergiam para o ar vibrante de luz e calor, sob um sol tórrido.O Sol era o local em que o céu se transformava em fogo atómico. Um fogo sem cor nem forma: o fogo na sua essência.
Para além do fogo do Sol e do barco, só havia azul. Um azul líquido. Ou antes, um azul sem matéria, sem substância. Algures, para lá de tudo o que era visível, o céu transformava-se em oceano sem deixar nunca de ser apenas azul, depois vinha desde essa lonjura invisível, passava por baixo do barco, e continuava para além do alcance do olhar, até se transformar em céu de novo.
O barco tinha parado numa bolha de azul com fogo por cima.












Paquete Niassa





Eu sei porque gasto tantas palavras para dizer isto: se eu dissesse apenas que estava um dia lindo far-me-ia entender, mas a verdade é que o dia estaria lindo se fosse um dia retratado numa foto ou mostrado num filme a cores e visto numa sala com ar condicionado, e garanto: nenhum de nós ali diria que estava um dia lindo.
E muito menos os da camada de baixo, porque é muito difícil tecer elogios à beleza natural quando temos apenas uma escolha de duas hipóteses possíveis: ou sufocar no porão pútrido do Niassa ou fritar os miolos no seu convés.Já o sargento que maltrata o piano vertical no bar da camada do meio não tem desculpa nenhuma para não distinguir a diferença entre a sublime criação de beleza e a torpe tortura psicológica, mas pelo menos fica provado que para uma coisa e para a outra se pode usar o mesmo instrumento.Eu regresso ao interior do bar e os soldados regressam aos porões, como se tivessem posto o filme a andar para trás. Eu fujo para o conforto do bar. Os soldados fogem para o sufoco do porão; fogem de uma tortura para outra tortura.
Percebo agora o conselho cristão para oferecer a outra face; é seguramente para não nos estarem a bater sempre na mesma.
Ainda restam alguns soldados a esturricar ao sol. Estes não tiveram forças sequer para descansar a face dorida e oferecer a outra. A que missão urgente vamos nós acudir para que sejamos tratados como escravos? Será que foi por isso que o Niassa parou? Porque ficou indeciso, dado que os negreiros costumavam rumar em sentido contrário?
Quando parti para esta viagem interroguei-me se não estaria a fazer a maior asneira da minha vida; pois quem me conhece sabe que sou perito em transformar a última asneira que faço na maior de todas, mas depois veio-me à ideia a imagem das caravelas a partirem para descobrir novos mundos e achei que era só cagaço. Sim, porque isto de um gajo como eu ir defender um império mete um bocado de medo.
E mais agora que o barco parou.
E ninguém nos diz nada.
Nunca ninguém nos diz nada, afinal. Nem sabemos ao certo para onde vamos e o que nos espera. Constatamos que o barco parou. Aceitamos isso como aceitamos o sol e a chuva. Continuamos a jogar king e a contar anedotas alegremente. E a ouvir um pianista que tem chouriços em vez de dedos, sem haver uma alma lúcida que lhe atire com uma cadeira.Mas a verdade é que o barco parou.
O ruído omnipresente dos motores era um dado adquirido que também aceitávamos passivamente. Mas parou.
Porquê?
Num país que manda soldados numa viagem que não cumpre os requisitos mínimos para transporte de porcos, e ainda por cima para defenderem um império ameaçado, a última coisa que se espera é que alguém pergunte "porquê".
A mais difícil das perguntas é a que fazemos quando nada sabemos, quando a ignorância é a lei e quando estamos num barco parado no meio de coisa nenhuma a caminho de uma guerra que oficialmente não existe. Como o primeiro passo de uma criança, inseguro e isolado, o primeiro de muitos outros. Como é impensável a primeira pergunta antes de ser feita! Duas sílabas apenas perante uma multidão de silêncios: por-quê?Mas se há quem acredite que corpos celestes tão distantes como Saturno e Neptuno podem influenciar o comportamento de uma pessoa, porque não hão-de um barco indeciso numa bolha de azul e um sargento que toca piano com chouriços influenciar esta minha alma sensível?
Porquê?

Que faço eu aqui?

Um Abraço
Manuel Bastos

VB. Obrigado Manuel pela riqueza da tua capacidade literária na descrição de factos por ti constatados e vividos ao tempo da guerra colonial.
Tudo isto só faz com que o NOSSO blog enriqueça toda a sua estrutura com que está a ser erguido.

Obrigado Companheiro.