sábado, 11 de outubro de 2008

480-O FIM.

Manuel Bastos (DFA)
Fur.Mil. Op.Esp. Mueda


Cantanhede
O Manuel já nos habituou às suas emocionantes descrições vividas na Guerra Colonial em Moçambique,mais concretamente em Mueda,que são uma grande valia para o enriquecimento deste nosso espaço.
Atrás chamei de emocionante às suas narrativas,mas esta que transcrevo a seguir...
Quero ser forte para fazer esta introdução ao que vão ler,mas os meus olhos perturbadores,insistem em deixar correr algumas lágrimas,O Manel contamos porque é que hoje é um Deficiente das Forças Armadas Portuguesas.
Não consegui publicar hoje uma foto,espero vir a fazê-lo brevemente,tirada à pouco tempo em Mueda por um grupo de pessoas que ali se deslocou,que foi legendada como "A PICADA DO CHINDORILHO-A ROLETA RUSSA DAS MINAS"
e o Manel acrescenta por baixo assim: "FOI AQUI QUE APOIEI OS DOIS PÉS NO CHÃO PELA ÚLTIMA VEZ NA VIDA".
Sei que não aprecias muito este tipo de suplicações,mas deixa-me pedir a Deus que te de muitos anos de vida.
Obrigado Manel pela força que nos transmites.
O FIM

O enfermeiro Costa tenta enfiar-me uma agulha no braço e vai dizendo – Ó furriel. Ó furriel. Ó furriel.
Como se me estivesse a pedir desculpa. Alguém ali ao lado diz um chorrilho de palavrões no tom em que se reza o credo.
Toda a gente olha para mim com olhos esbugalhados de medo.
Não ouço a minha voz, mas sinto que estou a dizer qualquer coisa, embora ninguém pareça entender-me.
O que quer que seja que o enfermeiro me deu parece estar a trazer o mundo de volta, mas devagar, muito devagar.
Começo a perceber que o que vejo à minha frente não são as pernas do cabo Lemos, que pisou uma mina de manhã e que eu ajudei a socorrer; são as minhas próprias pernas.
Agora ouço a minha voz mas não entendo bem o que ouço.
Estou a dizer ao enfermeiro que o meu amigo Faria acreditava que eu viria a ser um bom corredor dos 100 metros; que quando houver mudança de tempo, que o tempo é húmido na minha terra, eu irei ver-me aflito com dores; que tinha uma micose dos diabos naquele pé, que não passava com nada.
Não posso garantir, mas as minhas palavras devem ter um tom muito dramático porque vejo que os olhos do enfermeiro têm um brilho esquisito.
Estou apoiado nos cotovelos e deixo-me cair de nuca no chão.
O enfermeiro dá-me palmadas na cara e pergunta-me se estou bem.
Agora, como se fosse de uma importância vital para mim, reparo no capim visto de baixo para cima no meio da picada; reparo, por entre o capim, num retalho de céu de um azul luminoso, que não está completamente limpo porque umas pinceladas rápidas de branco fazem as vezes de nuvens e reparo no cheiro, no cheiro que, tenho a certeza, não me largará para o resto dos meus dias.
O cheiro orgânico e agreste da terra de África; o cheiro cálido e acolhedor da floresta, o cheiro meio metálico, meio resinoso do trotil deflagrado e o cheiro fresco, acre e doce da carne dilacerada.
Agora o som, este som sincopado e sibilante, do helicóptero que se avoluma abafando tudo e uma nuvem de poeira em rodopio que se adensa rapidamente, encobrindo de mim o mundo inteiro. Sou erguido do chão por mãos invisíveis e entro, planando, no helicóptero.
Sinto o impulso, que permanecerá para sempre completamente incompreensível, de me agarrar ao capim para impedir que me levem…




Um militar a na picada detectando minas.

Não tive tempo de me despedir de África.
Ao menos do perfume refrescante da madrugada; ao menos das picadas que dividiam o mundo em duas partes, de nós até ao infinito; ao menos do som omnipresente da floresta, aquele som grave que se ouve no intervalo do canto dos animais, talvez a terra a respirar, talvez a voz da própria floresta, a que nós por displicência costumamos chamar silêncio.
Ficou-me apenas aquele bocadinho de céu azul muito luminoso, quase limpo de nuvens; a imagem do capim a contrapicado e o odor.
O odor da selva e da guerra, num cocktail quase inconciliável, porém tão duradouro que de facto ainda hoje perdura.
O resto desvaneceu-se.
Tenho a sensação de nunca lá ter estado, de tudo não passar de uma história que me contaram. Os apontamentos que têm a minha letra e os diapositivos em que por vezes apareço, parecem-me verdadeiras imposturas.
E as memórias? Tenho memórias que parecem não caber no tempo que lá vivi.
Juraria que fui lá, dei uns tiros, rebentei uma mina e vim-me embora.
Então e o Lemos a correr à minha frente, de MG 42 em punho como se fosse uma G3, na Operação Relâmpago e eu a tirar slides atrás dele?
Então e a mina anti-carro, tudo pelo ar, o corpo todo a doer e a felicidade de o receber de volta com as peças todas?
Então e o golpe-de-mão à base de Gungunhana, a morteirada na árvore por cima de nós e os ouvidos a apitarem a noite inteira?
E a picada das bananeiras, aquele túnel na mata virgem?
E a picada de Omar, a roleta-russa das minas?
E o Vale de Miteda, o oceano de selva?
E as Águas, essa estância de férias improvisada no meio da guerra?
E as crianças a jogarem à bola?
Como se não houvesse guerra, como se a modesta igrejinha que mal se via lá ao fundo, os protegesse dos morteiros e rockets.
Crianças a jogarem com uma bola feita de um novelo de folhas de bananeira, porque os trapos eram para vestirem.
E eu sentado a vê-los jogar, como se eles me protegessem de mim próprio, com as minhas dúvidas existenciais e os meus complexos de culpa, e me restituíssem a inocência perdida.




Os meninos divertindo-se com uma improvisada bola.




Sei lá que mais… o velho maconde que tocava kanhembe e que me recebeu na sua mísera palhota como um rei recebe um general inimigo: com suprema dignidade e superior delicadeza, mas sem usar de diplomacia, que é o cinismo dos políticos.
Sofreu com cada palavra de genuíno ódio e quando eu saí, o som daquele instrumento estranho e o eco das suas palavras gritaram-me a evidência: eu era um estrangeiro, eu tinha que desertar.
Quem me contou isto, ou que sonho sonhei em que tudo se passou?
Às vezes dou por mim, do cimo de uma vida vivida, olhando o poço fundo do tempo com uma vertigem.
Dou por mim a escrever coisas sobre a guerra colonial como se quisesse trazer de volta a magia de África que, quem sabe, só existe na minha memória.
Ou simplesmente como se quisesse preservar o que de África ainda resta em mim.
Alguma coisa África me deu e que hoje faz parte do meu ser e que por certo me faz ver o mundo de um outro modo e, tenho a certeza, algo de mim eu dei a África.
Algures no Planalto dos Macondes, onde um dia colhi a derradeira imagem de um céu azul luminoso, antes que a palavra "Fim" fosse escrita na minha história de guerra; lá onde a fragrância exótica da selva e o relento rançoso da guerra se prenderam ao meu corpo para sempre, um pouco de mim ficou e, se é verdade que na Natureza nada se perde, com disse um dia quem sabe, então ainda lá perdura transformado.
Sabe-se lá em quê…
Desejo intensamente que seja uma flor.

Manuel Bastos
O Cacimbo