Fur.Mil. Op.Esp. Mueda
Atrás chamei de emocionante às suas narrativas,mas esta que transcrevo a seguir...
Obrigado Manel pela força que nos transmites.
O enfermeiro Costa tenta enfiar-me uma agulha no braço e vai dizendo – Ó furriel. Ó furriel. Ó furriel.
Um militar a na picada detectando minas.
Não tive tempo de me despedir de África.
Ao menos do perfume refrescante da madrugada; ao menos das picadas que dividiam o mundo em duas partes, de nós até ao infinito; ao menos do som omnipresente da floresta, aquele som grave que se ouve no intervalo do canto dos animais, talvez a terra a respirar, talvez a voz da própria floresta, a que nós por displicência costumamos chamar silêncio.
Ficou-me apenas aquele bocadinho de céu azul muito luminoso, quase limpo de nuvens; a imagem do capim a contrapicado e o odor.
O odor da selva e da guerra, num cocktail quase inconciliável, porém tão duradouro que de facto ainda hoje perdura.
O resto desvaneceu-se.
Tenho a sensação de nunca lá ter estado, de tudo não passar de uma história que me contaram. Os apontamentos que têm a minha letra e os diapositivos em que por vezes apareço, parecem-me verdadeiras imposturas.
E as memórias? Tenho memórias que parecem não caber no tempo que lá vivi.
Juraria que fui lá, dei uns tiros, rebentei uma mina e vim-me embora.
Então e o Lemos a correr à minha frente, de MG 42 em punho como se fosse uma G3, na Operação Relâmpago e eu a tirar slides atrás dele?
Então e a mina anti-carro, tudo pelo ar, o corpo todo a doer e a felicidade de o receber de volta com as peças todas?
Então e o golpe-de-mão à base de Gungunhana, a morteirada na árvore por cima de nós e os ouvidos a apitarem a noite inteira?
E a picada das bananeiras, aquele túnel na mata virgem?
E a picada de Omar, a roleta-russa das minas?
E o Vale de Miteda, o oceano de selva?
E as Águas, essa estância de férias improvisada no meio da guerra?
E as crianças a jogarem à bola?
Como se não houvesse guerra, como se a modesta igrejinha que mal se via lá ao fundo, os protegesse dos morteiros e rockets.
Crianças a jogarem com uma bola feita de um novelo de folhas de bananeira, porque os trapos eram para vestirem.
E eu sentado a vê-los jogar, como se eles me protegessem de mim próprio, com as minhas dúvidas existenciais e os meus complexos de culpa, e me restituíssem a inocência perdida.
Os meninos divertindo-se com uma improvisada bola.
Sofreu com cada palavra de genuíno ódio e quando eu saí, o som daquele instrumento estranho e o eco das suas palavras gritaram-me a evidência: eu era um estrangeiro, eu tinha que desertar.
Quem me contou isto, ou que sonho sonhei em que tudo se passou?
Às vezes dou por mim, do cimo de uma vida vivida, olhando o poço fundo do tempo com uma vertigem.
Dou por mim a escrever coisas sobre a guerra colonial como se quisesse trazer de volta a magia de África que, quem sabe, só existe na minha memória.
Ou simplesmente como se quisesse preservar o que de África ainda resta em mim.
Alguma coisa África me deu e que hoje faz parte do meu ser e que por certo me faz ver o mundo de um outro modo e, tenho a certeza, algo de mim eu dei a África.
Algures no Planalto dos Macondes, onde um dia colhi a derradeira imagem de um céu azul luminoso, antes que a palavra "Fim" fosse escrita na minha história de guerra; lá onde a fragrância exótica da selva e o relento rançoso da guerra se prenderam ao meu corpo para sempre, um pouco de mim ficou e, se é verdade que na Natureza nada se perde, com disse um dia quem sabe, então ainda lá perdura transformado.
Sabe-se lá em quê…
Desejo intensamente que seja uma flor.
Manuel Bastos
O Cacimbo