quinta-feira, 5 de março de 2009

VOO 834 KURIKA DA MATA


Miguel Pessoa
Cor.Pilav.Refº. Guiné
Lisboa
Caro Victor
Finalmente, ao fim de quase 36 anos, decidi-me a escrever o que tinha gravado na memória. Espero que gostes, que mais não seja pelas memórias que nos traz.
Um abraço. Miguel




KURIKA DA MATA

Sento-me no chão, ainda estonteado com a sequência dos últimos acontecimentos. Procurando retomar por completo a consciência, tento levantar-me, mas sinto a perna esquerda falhar ao mesmo tempo que uma forte dor me atinge. Procuro uma explicação para o que me está a acontecer e tento rever o que se passou nos últimos minutos. Começo a conseguir reconstituir toda a acção que me trouxe aqui - o apoio de fogo ao aquartelamento de Guileje, o sobrevoo do corredor do Guileje e a busca de indícios do IN na zona de Gandembel, o impacto violento sentido no avião, a perda total do motor, a minha tentativa de aproximação a Guileje, o afundamento brusco do avião, a minha reacção imediata accionando o manípulo de ejecção, depois... nada! Vejo-me agora isolado no meio da mata, com um pé torcido, segundo parece, e uma forte dor nas costas, que atribuo à violência da ejecção. Sinto que a minha vida está a andar para trás; e, afinal, o dia tinha começado perfeitamente normal...
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Naquele Domingo, 25 de Março de 1973, tinha iniciado o meu trabalho às seis da manhã. Estava prevista uma actividade de voo um pouco mais reduzida durante o dia, mas a parelha de alerta dos Fiats, constituída por mim e pelo meu camarada António Matos, estava a postos para o que desse e viesse; o mesmo sucedia com as outras tripulações que também tinham entrado de alerta à mesma hora: do DO-27, dos AL-III (o heli das evacuações e o heli-canhão) e as enfermeiras paraquedistas prontas para qualquer evacuação que surgisse.
A manhã passou-se sem sobressaltos. Opto por almoçar qualquer coisa no pomposamente chamado "clube de pilotos", junto às Esquadras de Voo. Esta sala de estar, com um bar adjacente, permite às tripulações a permanência dos pilotos junto das Esquadras, para poderem acorrer mais depressa a qualquer solicitação. O accionamento do alerta é exigente e não se compadece com comezainas demoradas - desde o accionamento do alerta até à descolagem temos um tempo máximo de 10 minutos, o que inclui sacar o equipamento de voo, dirigir-se às operações para receber instruções e os mapas 1/50.000 da zona a apoiar, ser transportado até ao avião, pôr em marcha, rolar para a pista e descolar... Exige alguma celeridade.
Aproximávamo-nos das treze horas e eu tinha começado a tomar o meu café. De repente soam os altifalantes estrategicamente colocados no corredor limítrofe das Esquadras: "Alerta aos Fiats!". Imediatamente nos deslocamos à sala de equipamentos de voo, onde sacamos o equipamento mínimo para a missão[1] e seguimos em passo acelerado para as Operações. Aí, o Oficial de Operações do Grupo Operacional 1201 e o Oficial da Dia às Operações explicam-nos a situação.
Trata-se de um apoio de fogo solicitado pelo aquartelamento de Guileje, na sequência de uma flagelação com foguetões e canhões sem recuo sofrida pouco antes. Para aumentar o tempo sobre o objectivo é decidido escalonar a saída dos dois aviões, de modo a garantir uma pequena sobreposição na zona a apoiar.













Sou mandado avançar em primeiro lugar; dirijo-me rapidamente para o avião e atiro-me de imediato lá para dentro - nestes casos o mecânico antecipou a inspecção exterior e poupa-nos tempo. A rolagem para a pista é feita mais depressa que o habitual e para poupar tempo faço uma descolagem de corrida[2]. Rapidamente o "Tigre Negro"[3] está no ar.
O percurso para o objectivo é feito com bastante potência para diminuir o tempo em rota; aproveito para verificar o armamento e o combustível e, já próximo, inicio os contactos via rádio na frequência terra-ar.
Guileje esclarece-me sobre a possível origem dos disparos e indica-me a zona do antigo aquartelamento de Gandembel como a mais provável. À medida que me aproximo da fronteira começo a baixar de altitude - o pessoal do lado de lá (Kandiafara e Simbeli, por exemplo) tem a mania de treinar as anti-aéreas se nos apanham a jeito, por isso manter os 1000' é uma solução de compromisso entre evitar os RPG e mantermo-nos fora da vista da AAA[4].
Já no local procuro indícios de movimento de pessoas ou veículos, tentando visualizar trilhos recentes. Inicio uma volta pela esquerda e nesse momento sinto um impacto forte na traseira do avião, a que se segue o ruído característico da paragem do motor, o que posso confirmar pelo decréscimo rápido das rotações. Tento de imediato reacender o motor através da ignição de emergência enquanto, prevendo já o pior, prancho o avião para um lado e para o outro na tentativa de localizar e atingir a zona de Guileje. O motor continua parado e a velocidade não vai durar muito tempo. Quase de seguida, sinto a perda total dos comandos do avião, iniciando este uma descida brusca em direcção ao solo. Nem tenho tempo de alertar a Base - provavelmente nem me ouviriam dada a minha baixa altitude. Estou a mais no avião e a única solução é ejectar-me. Puxo a argola de ejecção[5] que está por cima da minha cabeça. A adrenalina multiplicou-me as forças de tal modo que nem sinto resistência ao accionar o sistema. A velocidade de raciocínio multiplicou-se igualmente. Imagino que falhou a ejecção e penso accionar a alavanca alternativa (na cadeira, em baixo, entre as pernas). Sinto então a explosão do cartucho da cadeira e deixo de ter consciência do que me rodeia. Afinal, passou-se 1/3 de segundo entre o accionamento do manípulo e a saída da cadeira...
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Amparado a uma árvore, ainda tonto, tento fazer um ponto rápido da situação e deixo para mais tarde a análise do que se passou com o avião ou a maneira como acordei naquele sítio. O facto é que estou em terreno hostil, ainda distante do aquartelamento, num ambiente que é novo para mim, sozinho e quase incapacitado de andar. E se o IN viu a minha ejecção é natural que se dirija para o local para tentar apanhar-me. Pelo meu cálculo penso estar a sudoeste do antigo aquartelamento de Gandembel e considero ser a melhor opção avançar para NW, o que me aproximaria da estrada Aldeia Formosa-Guileje e do próprio aquartelamento.[6]
Abro o pequeno kit de sobrevivência que nos tinha sido distribuído - na verdade o seu conteúdo é uma novidade para mim, pois embora tivesse uma ideia do que lá estava nunca tinha visto nenhum aberto. Aliás, o kit era coberto por um forro em flanela, todo cosido, o que tinha impedido uma exploração prévia do seu recheio...
O essencial é tentar iniciar a marcha com o tornozelo ainda quente, pois receio não conseguir andar quando a perna arrefecer. Estou num local bastante arborizado e com muita vegetação junto ao solo, o que dificulta a progressão. Avanço a coxear, tropeçando com frequência. Tenho receio de perder a bússola que vinha no kit, é minúscula e se a deixar cair, naquele terreno, arrisco-me a não conseguir encontrá-la. Opto por segurá-la entre os lábios, ficando com as mãos livres para me ir apoiando sempre que tropeço. Com o tempo aumentam as dores na perna e a progressão é cada vez mais difícil.
Parece-me começar a ouvir barulho de aviões a jacto - será o outro avião de alerta já à minha procura? Começo a alterar as minhas prioridades - agora a minha preocupação é tentar encontrar um local mais aberto de onde possa disparar os very-lights e ser localizado por um avião. E há que ter cuidado, que os meus recursos são limitados, para alimentar a caneta dos very-lights só tenho nove cargas - a dotação que nos era normalmente atribuída[7]. Mas a copa das árvores não deixa muito espaço para manobra.
Finalmente, alcanço uma zona que está longe de ser a ideal mas que, dado o desnível das copas das árvores, poderá permitir o disparo enviezado dos very-lights, o que talvez possibilite a sua visualização do ar. O facto é que já não consigo andar e as costas também me doem bastante. Não me parece que consiga sair dali pelos meus meios.
Não temos rádios distribuídos, mas no kit vêm uns fósforos presumivelmente anti-humidade. Pode ser que fazendo uma fogueira... No momento também não vejo grande utilidade no preservativo que vinha no kit. Se a ideia era servir de contentor de água, esqueçam, que aqui não há nenhuma... O mesmo para o anzol - só se for para as férias...
O ruído dos aviões começa a ser mais frequente, mas parece que a área de busca é ainda afastada. Mesmo que eles se dirijam na minha direcção não vou conseguir vê-los e eles também não irão localizar-me; a única esperança é que vejam um very-light.
Sento-me encostado a uma árvore, virado para a zona mais descoberta (ou, será melhor dizer, menos cerrada...). Ao fim de algum tempo sinto a aproximação de um jacto. Parece vir na minha direcção, mas não consigo vê-lo. A minha experiência permite-me ter uma ideia, pelo som, da direcção e da distância do avião em relação ao ponto em que me encontro; disparo o primeiro "very-light" - um verde, apesar de não me sentir em grandes condições físicas - mas os minutos seguintes não me dão qualquer indicação de que tenha sido visto; nem as duas horas seguintes - as minhas tentativas de ser visto não estão a resultar e já utilizei quatro dos nove very-lights (já comecei a gastar dos brancos, mas a verdade é que já estou a borrifar-me para as cores!).
Começam a aproximar-se as cinco da tarde - na Guiné a transição do dia para a noite ocorre cedo e com uma certa rapidez; sinto que já não tenho muito tempo para ser localizado antes de escurecer. Volto a detectar a aproximação de um avião e disparo mais um very-light. O avião passa próximo, sinto-o dar a volta e passar outra vez próximo de mim, a baixa altitude[8].
Fico com a esperança de ter sido visto, mas a hora seguinte não confirma as minhas expectativas. E a noite cai finalmente, avolumando-se com ela a minha apreensão, dada a minha visível inadaptação ao ambiente que me envolve. Sou perturbado por uma série de dúvidas que me assolam, para as quais não tenho resposta - Os pilotos terão visto algum very-light? Estará a ser organizada uma operação de recuperação? Como pensarão recolher-me? O IN terá detectado a minha ejecção? Irão tentar "agarrar-me à mão"?
A noite vai ser certamente prolongada - e pouco dormida, seguramente. Aproveito para repousar um pouco o corpo, estendendo-me no chão, o que me permite reduzir as dores nas costas e simultaneamente dar menos nas vistas de quem se aproxime.
Tenho algum tempo para pensar no que me levou a esta situação. O IN terá pelos vistos atingido o Fiat, do que resultou a falha do motor, logo seguida da perda de comandos. Dadas as condições em que estava a voar, não tenho dúvidas de que a ejecção terá ocorrido nos limites da segurança, a baixa altitude e com uma acentuada razão de descida do avião desgovernado. Do modo como observei o paraquedas, meio pendurado ao longo da árvore, começo a acreditar que ele apenas terá completado a sua abertura já no contacto com a árvore em que me enfeixei, o que terá travado a velocidade da descida, acabando eu - mesmo assim - por entrar depressa demais pelo chão, provocando as lesões na perna esquerda. Calculo agora que será mais que uma entorse, embora não haja fractura completa da perna, nem fractura exposta.
Lembro-me que a minha arma pessoal - uma Walther PPK .22 [9] - ficou guardada no anti-g, mas não tenho a certeza se não será melhor assim - a posse da arma dar-me-ia a tentação de a usar em situações em que tal não era recomendado. Bom, não tenho a arma, não vale a pena pensar mais nisso.
A noite é interminável - mantenho-me desperto embora por vezes o cansaço me faça dormitar, mas acordo logo, alertado por um qualquer barulho. A tensão da situação e a desidratação que começa a afectar-me também não contribuem para me acalmar. No escuro parece-me detectar o movimento de um insecto que brilha, mas trata-se afinal dos ponteiros luminosos do meu relógio, a que a minha visão desfocada (por falta de referências) parece dar uma sensação de movimento... Acordo outra vez com a sensação de algo encostado à minha perna (uma cobra?) - não me mexo, até porque cobras não são o meu forte; será a perna partida a latejar que dá aquela sensação de movimento? A verdade é que essa sensação passa - ou o animal se foi ou a perna deixou de latejar...
Cometo um erro ao poisar a cabeça no chão para repousar. Fico com uma orelha encostada ao chão, o que amplifica todos os sons produzidos à minha volta. O simples contacto de uma folha a cair, ao bater no chão, faz lembrar a progressão pé ante pé, de alguém que se aproxima. Apesar de a escuridão não o permitir, parece-me divisar duas sombras que se vão aproximando de mim...
O amanhecer encontra-me exausto, mas satisfeito por ver a luz do dia. Fico a aguardar o regresso dos aviões para tentar perceber o que estão a planear. Finalmente começo a ouvi-los. É uma miscelânea de sons que vou identificando - Fiats, T-6, DO, AL-III. Começo a ter a certeza de que fui localizado. Pelo sim, pelo não, quando sinto a sua aproximação, disparo mais um very-light. Mas sistematicamente, parece que os AL-III se aproximam e a uma certa distância voltam para trás[10].
Os very-light esgotam-se finalmente. Resolvo despir a parte de cima do fato de voo e retirar a camisola interior, branca. Depois de vestido novamente o fato de voo, decido pôr a camisola interior por cima, à laia de pull-over. Espero ter assim mais possibilidades de ser detectado do ar, por fazer agora um maior contraste com a vegetação.
São nove horas da manhã - já passaram 3 horas de luz e nada. Tinha pensado que um AL-III com guincho chegaria à vertical e tentaria recuperar-me pelo ar... mas a verdade é que nenhum aparelho me sobrevoa.
Em desespero, resolvo fazer um fogo que seja visto do ar (má ideia, que ainda posso ficar carbonizado...) mas a natureza ajuda - a vegetação está húmida... e os tais fósforos anti-humidade também! Vários falham e não consigo acender nada. Quando risco o último, a cabeça salta, ainda por arder. Tiro as luvas e com a ponta dos dedos seguro a cabeça do fósforo, friccionando-a contra a lixa: começa a arder queimando-me os dedos mas apagando-se logo de seguida.
Resigno-me a esperar por auxílio, que da minha parte parece-me não haver muito mais a fazer. Mas a desidratação e a tensão começam a pregar-me partidas. Pressinto a aproximação de pessoas, mas não as identifico. Começo a pensar que é pessoal do PAIGC que está a envolver-me, na esperança de poder preparar uma emboscada ao helicóptero ou helicópteros de salvamento. Chego à conclusão que o melhor é não chamar a atenção dos aviões, pois se eu pelos vistos já estou "aviado", não vale a pena levar comigo algum camarada que esteja a tentar salvar-me.



Começo a divisar cabeças que se aproximam pelo meio da folhagem; são africanos, o que parece confirmar as minhas piores previsões; o armamento e uniformes também não são das tropas portuguesas. Sabem o meu nome (mas também não é difícil, têm provavelmente infiltrados na Base). Dizem-me para ir com eles - e eu peço-lhes "delicadamente"[11] para se irem embora e me deixarem em paz.
Aparece o que parecia ser o chefe - de barbicha e óculos - e diz-me que é o Marcelino da Mata. Ora eu, "pira" de 4 meses da Guiné, embora conhecendo as referências do senhor, nunca o vi pessoalmente, mas é conhecido que ele costuma levar cantis com Fanta e Coca-Cola. Peço-lhe de beber, ao que ele anui. Provado o produto fica confirmada a identidade do meu interlocutor, o qual merece da minha parte, de imediato, um efusivo cumprimento: "Ah granda Marcelino!".
Chega entretanto ao local pessoal meu conhecido do BCP12 e renova-se a minha confiança em acabar bem o dia. Ao ponto de, quando sugerem a construção de uma padiola, ter recusado: "Entrei nesta mata de pé e é de pé que vou sair" - Pudera! Agora que já tenho as costas quentes...
A deslocação até ao helicóptero não tem grande história, embora seja demorada e cansativa, pois a incapacidade da minha perna esquerda obriga-me a progredir no terreno apoiado em dois elementos das Operações Especiais, um de cada lado.
O pessoal do Marcelino tem pelos vistos a mania de provocar o IN pois, à medida que avançam no terreno, gritam para o mato "Eh F.... da P.... do C.......! Apareçam, seus C....!", ao que eu lhes sugiro que primeiro me ponham no helicóptero e depois resolvam essa contenda com os outros, que por mim já tenho que me chegue. Só me falta que aqueles tipos comecem aos tiros uns aos outros, e eu sem me poder mexer!
Durante o percurso, noto que um dos paraquedistas que vai à minha frente se vira para trás de vez em quando, tirando-me uma fotografia.




Ora eu ainda estou um bocado descomposto e continuo com a camisola branca por cima do fato de voo. Peço uns momentos para tirar a camisola, que guardo num dos bolsos do fato de voo,




e prossigo a caminhada com mais à-vontade, pois já me sinto razoavelmente enfarpelado e em condições de enfrentar a máquina fotográfica. Apesar dos perigos, a nossa progressão começa a parecer um passeio turístico, pois chegamos a parar para tirar uma foto de grupo.




O Marcelino resolve pôr uma pose mais agressiva, de catana na mão, o que, associado à minha cara de enfiado, mais faz parecer que fui apanhado pelo IN...
Chegamos finalmente à orla da mata, onde um AL-III nos espera. Para apoiar aquela evacuação, o Serviço de Saúde da BA12 tinha destacado um médico[12].





Quando entro no heli, devo estar com um aspecto abatido pois ele decide dar-me um tónico qualquer que eu aceito de bom grado, que ainda estou com sede... E o facto é que fico com uma passada que ninguém me cala! Também, tinha estado quase 24 horas sem falar...
Aterramos em Guileje, onde muitos militares curiosos esperam para ver o aviador recuperado; alguém resolve dar-me, em jeito de compensação, uma garrafa de champanhe. Um novo helicóptero está a postos no local para me transportar para o Hospital Militar; também já lá está a enfermeira paraquedista que me vai acompanhar, a enfermeira Giselda[13]; embarcamos no helicóptero e mantemos 1500' de altitude[14] em direcção ao Hospital, onde chegamos sem problemas. Tiradas várias radiografias, confirma-se a fractura do perónio; depois de me colocarem o gesso na perna partida,




o helicóptero leva-me (mais a garrafa de espumante) para a placa de helicópteros da Base - parece que finalmente acabou o dia e que vou poder descansar de tantas emoções. Engano meu!




À chegada à Base sou surpreendido pela presença de um grupo de militares da BA12 - pilotos, mecânicos, enfermeiras e outros - que resolvem festejar exuberantemente a minha recuperação. Sinto-me emocionado com esta recepção. Para além dos laços de amizade que tenho com alguns dos presentes, neste momento eu represento para eles o produto final do trabalho que, directa ou indirectamente, desenvolveram com tão bom resultado. Por isso sentem-se felizes por eu estar ali. E eu estou feliz por ter regressado a casa.

Miguel Pessoa
(Por vezes "Kurika" ou "Kurika da Mata")

[1] Nas missões normais o piloto usava o fato anti-g (que permite ao corpo suportar maiores acelerações (Gs)), o "Mae-West" (colete insuflável para a água), as fitas para as pernas (que, ficando presas à cadeira, no caso de uma ejecção não controlada puxavam as pernas para trás, evitando lesões graves nos joelhos e/ou nas pernas num possível contacto com o aro da "canopy" durante a ejecção) e, naturalmente, o capacete de voo com a máscara acoplada. No caso da saída do alerta, que se pretendia muito mais expedita, muitas vezes dispensávamos o anti-g, levando apenas o "trikini"- como lhe chamávamos - o capacete, o mae-west e as fitas da cadeira, isto no pressuposto de que a carta 1/500.000 e as luvas de voo já estavam guardadas nos bolsos do nosso fato de voo. O paraquedas estava integrado na cadeira de ejecção, por isso era "vestido" quando nos sentávamos dentro do avião.
[2] A descolagem de corrida era um procedimento mais expedito usado nas saídas de alerta em que o avião, quando entra na pista, está já a ser acelerado para a descolagem e os procedimentos antes da descolagem são feitos enquanto o avião ganha velocidade na pista. Pelo contrário, em condições normais o avião é imobilizado no início da pista, são efectuados os procedimentos antes da descolagem, é acelerado o motor para a potência máxima e, verificada a normalidade de todas as indicações do motor, são libertados os travões, e o avião inicia então a corrida de descolagem (o percurso na pista desde que larga travões até ter as rodas no ar).
[3] Indicativo normal da parelha de alerta. Nos Fiats não usávamos os nossos indicativos pessoais, apenas no DO-27, onde o meu nome de guerra era "Kurika".
[4] Artilharia Anti-Aérea
[5] A que chamávamos Sto.António, por ser em forma de auréola... Ao puxar-se para a frente, accionava o sistema de ejecção e desenrolava uma lona que tapava a cabeça do piloto, protegendo-o de certa forma de pequenos destroços e do fluxo de ar exterior, quando a cadeira saía do avião.
[6] Infelizmente o meu raciocínio estaria certo se eu estivesse a sul daquela estrada. Mas as manobras que fiz levaram-me para norte dela e eu nunca mais iria cruzar a referida estrada...
[7] 3 very-lights verdes, 3 brancos e 3 vermelhos, usados de acordo com o estado em que o aviador se encontrava (do menos grave para o mais grave). Isto seria aplicável se fossem muitos. Assim, a partir de certa altura usa-se os que temos, não importa a cor...
[8] Contar-me-iam mais tarde que o TCor. Brito, Comandante do GO1201 - o piloto em questão - referenciou o disparo deste very-light e sobrevoou novamente o local, tendo divisado com algum custo o meu paraquedas, meio enterrado numa árvore. Convencido de que o piloto estaria num estado de saúde razoável, acertadamente considerou que não havia condições de segurança para lançar de imediato uma operação de salvamento, dada a hora tardia, antes preferindo iniciar o planeamento de uma operação bem sustentada, a desencadear nas primeiras horas da madrugada.
[9] As armas de baixo calibre, embora menos eficazes, eram as mais apropriadas para os pilotos dos Fiats. Veja-se que uma arma destas, pesando cerca de 500g, representa mesmo assim um peso de cerca de 9 kgs durante uma ejecção (18 Gs=18x a aceleração da gravidade). Assim, com uma arma de maior calibre (e peso correspondente), em caso de ejecção o piloto arriscava-se a vê-la rasgar o bolso ou o coldre em que a guardava, e desaparecer.
[10] Soube posteriormente que naquela altura os AL-III procediam à colocação de Paraquedistas e Operações Especiais na orla da mata em que me encontrava, para estes depois prosseguirem a pé na minha direcção.
[11] Segundo alguns testemunhos, parece que não foi bem assim. Eu terei dito "Vão-se f.... ; deixem-me morrer aqui em paz sozinho" ou algo semelhante. Tenho que aceitar esta última versão como correcta, porque por aquela altura eu já tinha os platinados a falhar. Embora me choque, porque sempre fui uma pessoa bem educada...
[12] Convém esclarecer o porquê da presença de um médico nesta situação. Pouco tempo antes tinha surgido uma determinação do Estado-Maior que proibia a ida das enfermeiras paraquedistas à zona de combate. Esta decisão surgiu na sequência da morte de uma e ferimento de bala de outra; o curioso é que nenhuma destes casos ocorreu no decurso de uma evacuação à zona, pois uma morreu num acidente na placa dos DO-27 (na Guiné) e outra foi atingida por uma bala quando voava noutro DO-27 (em Moçambique). Isto mostra o receio que as chefias tinham dos efeitos na opinião pública, caso ocorresse a morte de uma enfermeira em verdadeiro cenário de guerra. À época aceitava-se que as mulheres apoiassem o esforço de guerra, mas na retaguarda, enquanto que não se via com bons olhos que ela participasse activamente na frente de combate.
[13] A Giselda acompanhou-me nessa evacuação e, desde então, nos momentos mais importantes da minha vida - casámos em Outubro de 1974.
[14] Não há dúvida que tivemos sorte. Embora começassem a surgir no TO os mísseis Strela, até ali desconhecidos, nenhum deles estava, pelos vistos, no percurso que seguimos para o Hospital. A altitude mantida colocava-nos perfeitamente ao alcance do míssil. Mas não era o nosso dia...






VB:Companheiros,este texto está em meu poder à alguns dias,por foi por disponibilidade de tempo ou esquecimento que o não editei,foi apenas e somente a emoção que me aprisiona os movimentos de cada vez que me disponho a fazê-lo.
Poderá parcere estranho a muitos de vós,talves até ao próprio Miguel Pessoa,mas foi e será um dos momentos que mais marcou a minha vida.

Estive ontem a falar com ele e "proibiu"de me voltar a enviar textos relativos aquele acontecimento!

Parou!Não vai...não consigo...Desculpa Miguel




JC: Em primeiro lugar o agradecimento ao Miguel Pessoa por partilhar no "nosso" Blogue passagens críticas e marcantes ocorridas há 36 anos ao serviço da "nossa" FAP.
Documento exemplarmente escrito que nos transporta para a situação ao ponto de apetecer dizer "tem calma, está tudo sob controle, estamos aqui", complementado com apontamentos de delicioso sentido de humor.
De enorme mais-valia as notas explicativas para o conhecimento de todos nós e para os vindouros.
Dos testemunhos fotográficos, além do visível sofrimento do Miguel Pessoa, tomo a liberdade de destacar os diversos militares da BA12 celebrando a sua recuperação, sintomático do espírito de camaradagem ali reinante.
Quantos dos nossos tertulianos viveram estes momentos ?
Esta geração generosamente partilhando e contando na primeiro pessoa, para todos nós, para os vindouros, lembranças difíceis,acontecimentos da nossa história.