sexta-feira, 13 de março de 2009

VOO 852 O ZÉ DO GUIDAGE.



Giselda Pessoa
SargºEnfª.Paraqª. Guiné

Lisboa


Amigo Victor

Aqui vai mais um texto para o blog.

Neste misturam-se os velhos tempos da Guiné com outros bem mais recentes.

Um beijinho.


Giselda




O ZÉ DO GUIDAGE.

Há quase dois anos tive a oportunidade de ser contactada pelo Zé, um velho conhecido da Guiné.
Tudo começou com um artigo publicado num jornal sobre um ex-piloto da Força Aérea na Guiné, o então Ten. Miguel Pessoa(1), artigo esse em que era referido o facto de ele ter casado com uma ex-enfermeira paraquedista, Giselda - eu. Contava-se também a minha ida atribulada ao Guidage no dia em que outros aviões foram abatidos pelos mísseis Strela. Com esses dados em mão o Zé iniciou a busca de um contacto telefónico e, tendo-o conseguido, foi-lhe fácil chegar à fala comigo.
Soube assim que o Zé era um ex-militar que tinha cumprido uma comissão de serviço na Guiné, mais concretamente no Guidage,




de onde tinha sido evacuado em 6 de Abril de 1973, e que procurava confirmar se tinha sido eu a enfermeira que tinha feito essa evacuação.
6 de Abril é uma data que está fortemente marcada na minha memória e não preciso de vasculhar papéis para saber o que sucedeu nesse dia. Dois aviões foram abatidos, um terceiro desapareceu, perderam-se três pilotos e um enfermeiro da Força Aérea, dois oficiais e um sargento do Exército, um milícia local do Guidage. E o avião em que eu seguia para uma evacuação no Guidage quase foi abatido. Tudo isto já tem sido referido em vários sítios, até neste blogue. O que não se sabe, e este telefonema veio relembrá-lo, é que o dia 6 de Abril começou para mim com uma deslocação ao aquartelamento de Guidage logo às primeiras horas da manhã, a fim de evacuar um militar do Exército gravemente ferido. E o mais curioso - e tocante - é que esse militar, descobria-o agora, era o Zé, o homem que estava ao telefone.
Naturalmente, tivemos uma interessante conversa, embora limitada pelo próprio meio utilizado. Mas ficou-me a ideia de poder vir a falar pessoalmente com ele, no futuro. Essa oportunidade surgiu há cerca de um ano, quando fui contactada por um responsável por uma produtora de trabalhos para o Canal História. Pretendia essa produtora fazer uma reportagem sobre as enfermeiras paraquedistas em Portugal, pedindo o contributo das ex-enfermeiras para prestarem depoimentos sobre as suas experiências pessoais.
Para além de me disponibilizar para essa entrevista, lembrei-me de propor igualmente que o Zé fosse convidado a participar nessas gravações, pois certamente o seu testemunho seria interessante. Dado que concordaram, acabei por ter a oportunidade de me encontrar com o Zé em Lisboa, no decorrer dessas gravações.
O que eu me lembro, o que ele me disse e o que ficou gravado podem resumir-se, de uma forma simples, no seguinte:
O Zé encontrava-se a trabalhar na construção de um telhado de um edifício, no exterior, quando repentinamente o quartel é alvejado pelo PAIGC. Estando a descoberto naquele momento, tenta procurar um abrigo, mas quando ali chega verifica que o abrigo está cheio, principalmente com gente da população. Não tendo possibilidade de se proteger completamente, fica à entrada, meio a descoberto. Ouve de repente uma explosão muito próxima, de uma granada ou morteiro, e nesse instante sente um impacto no corpo. Leva as mãos ao corpo e retira-as cheias de sangue.
Após um período de semi-inconsciência, lembra-se de ter aberto os olhos e ver uma senhora com uma T-shirt branca e calças de camuflado, não sabendo se tinha morrido e se era o seu anjo da guarda que ali estava. Recorda ainda a evacuação no DO-27 para a BA12 e o transporte para o Hospital. Refere-me ainda ter a plena consciência de que hoje não estaria aqui se não tivesse sido evacuado naquele momento.
Afastando a hipótese do anjo da guarda, devo concordar com ele no restante. O Zé teve a oportunidade de utilizar o único avião que nesse dia conseguiu ter êxito na evacuação de feridos do Guidage. A gravidade do seu estado não aconselhava de modo nenhum a sua permanência no aquartelamento. O avião em que pouco tempo depois regressei ao local acabou por ter de aterrar de emergência em Bigene, depois de alvejado por um Strela, e não poderia tê-lo evacuado. O avião que substituiu este na missão, embora tendo aterrado no Guidage e descolado com um ferido a bordo, desapareceu após a descolagem, nunca mais se sabendo nada do avião e das pessoas que lá seguiam. Se o Zé tivesse seguido também nesse avião, seria hoje mais uma baixa a lamentar.
O Zé deve a sua vida em grande parte à sorte, embora possa ter tido uma pequena ajuda de alguém que, não sendo anjo da guarda, estava ali precisamente para o apoiar.

Giselda Pessoa
(1) Cor.Pilav.Refº,primeiro piloto da FAP a ser atingido pelo missil "Strela"
VB: Olá Giselda.
Mais uma vez nos delicias com as tuas histórias onde é bem patenteada a grande missão que tiveram as Enfªs.Paraquedistas durante a guerra colonial.Nunca é de mais relembrar o vosso efectivo na Guiné,5/6,para responder a um teatro operacional composto por milhares de militares.
Gostava de convidar todas as Companheiras Enfªs.a nos presentear com as suas massacradas missões na defesa da vida daqueles que hoje,graças a Deus e a vocês,ainda são seres humanos neste mundo.