quinta-feira, 19 de março de 2009

VOO 865 "ESTIVE NA GUERRA COM O MEU PAI"


VB. No passado domingo a revista do jornal "Correio da Manhã",publicava no seu habitual espaço intitulado "A minha Guerra",dedicado aos militares que prestaram serviço militar na Guerra Colonial,uma entrevista com o nosso companheiro Hugo Coimbra,onde exponha um caso curioso,ou seja,ele e seu pai encontram-se como militares,em representação do exército,no referido TO.
Vejamos o que disse acerca do caso:
"Estive na guerra com o meu pai"
A minha família é uma daquelas que foi destroçada pela guerra. O meu pai, como médico, e eu, como enfermeiro, assistimos a episódios de terror nos hospitais, impossíveis de esquecer
O meu pai – Manuel Rodrigues Coimbra – era militar de carreira. Como médico de Clínica Geral e Estomatologia tinha feito a tropa em 1953, como oficial miliciano. Em Maio de 1972 recebeu uma inesperada convocatória do Distrito de Recrutamento Militar de Coimbra: Estava mobilizado para a Guiné. Ficámos todos surpreendidos. Como era possível ele ter que viver de novo a vida militar? Protestamos em família – mais uma destroçada pela Guerra Colonial!
Apesar de ter invocado a idade – 53 anos – e uma doença cardíaca, partiu em Julho de 1972, com a patente de tenente-coronel miliciano médico. Quando embarcou para África disse-lhe que nos veríamos em breve. Eu tinha feito 20 anos e estava apurado para todo o serviço militar. E assim aconteceu. Também fui para a Guiné e em Outubro de 1972 ingressei no Curso de Sargentos Milicianos, em Bolama. Foram três meses muito duros, devido ao clima e à instrução. As instalações eram horríveis e sofremos três ataques – um de grande envergadura, durante o qual foram utilizados muitos mísseis. Sobrevivi, em grande parte devido ao apoio moral do meu querido pai.
Em Janeiro fui colocado no hospital militar como sargento miliciano enfermeiro. O ano de 1973, na Guiné, foi considerado pelos estrategas militares como o mais duro da Guerra Colonial. Eu também penso que sim. Desde o amanhecer até ao pôr do Sol, era um movimento louco dos três helicópteros com feridos, mortos, estropiados civis e militares. Vivi a dureza da guerra, as consequências da entrada dos mísseis dos guerrilheiros no teatro de operações e a nossa perda do domínio aéreo. Vi e ouvi muitos militares pedirem a morte, tal o estado em que se encontravam. Vi um jovem furriel sapador que tinha ficado sem uma perna, braços, órgãos sexuais, cego, quase todo queimado, pedir desesperadamente a eutanásia. Não me esqueço do mítico grupo de Marcelino de Mata que, apesar da sua valentia, teve muitos homens estropiados.
Nunca mais esqueci uma criança africana mutilada e uma enfermeira cubana, capturada, que serviu de prazer à loucura e desejo de um pelotão. A sensual mulher dançava muito bem flamenco, para alegria dos militares. Apesar de nunca ter estado no campo de batalha, vivi situações muito complicadas e de horror, nos corredores e camas do hospital militar. É como se estivesse hoje a ver essas imagens. E lembro o capitão Gomes, dos comandos, que vindo de Guidage, apoiado num pau, dizia: 'Afinal há inferno!'.
Assisti à saga do tenente Pessoa, quando o seu avião Fiat foi atingido por um míssil ‘Strela’. Foi evacuado pela enfermeira pára-quedista que viria a ser sua mulher. Vi o corpo estropiado do capitão Mandinga, em Farim, e o choro pungente das mulheres da tribo; vi chegar um herói, o major Coutinho, que ao abandonar Guilege salvou os seus homens e a população, mas foi preso e demitido pelos seus superiores devido à retirada.
O meu pai, tirado à terra que tanto amava, Santa Comba Dão, nunca se conseguiu adaptar, apesar da minha presença no teatro das operações. O brigadeiro Jaime Banazol entrou em conflito com ele, mas o grande general Spínola interveio e sanou a situação. O pior aconteceu depois – o brigadeiro não gostou de ser desautorizado e, quando soube da minha existência, centrou em mim as suas atenções. Passei para as evacuações e estive perante momentos muito difíceis. Devido a tudo isto e aos excessos da juventude, o meu estômago não aguentou e um dia acordei cheio de tubos e hospitalizado.
Fui evacuado para o Hospital da Estrela e depois para o depósito de indisponíveis, na Graça, onde fui a uma junta médica e considerado deficiente das Forças Armadas. O meu serviço militar terminara. Esta situação insólita foi comentada pelos opositores da Guerra Colonial e notícia na Rádio Argel.
No entanto, nem só em coisas tristes, desgraças e morte se baseou a minha passagem por terras de África. Conheci um mundo diferente daquele a que estava habituado e desfrutei muito com o meu VW carocha, que levei para a Guiné e depois fiz regressar a Santa Comba Dão. Conheci muitos camaradas especiais de todos os pontos do País e fomentei a amizade com alguns que já conhecia da região. Estou a escrever e a preparar uma exposição cujo título será ‘Guiné – Saúde e Sofrimento’, que estará patente em Santa Comba Dão e incluirá a apresentação de uma compilação dos militares do concelho que estiveram na Guiné.
Paralelamente, estou a ultimar o livro ‘O Atirador de Seringa’ – que tem um carácter autobiográfico e documental, inserido naquilo que apelido de escritos do sentir. Numa altura em que a Guiné-Bissau voltou a estar no topo da actualidade, mais uma vez pelos piores motivos, recordo, a título de curiosidade, que o actual primeiro-ministro do País, Carlos Gomes Júnior, foi meu camarada no Curso de Sargentos Milicianos, em Bolama. Ficava exactamente ao lado de mim na caserna.
No que respeita ao stress pós-traumático de guerra, que atingiu milhares de militares portugueses, sou da opinião que o problema não é exclusivo daqueles que estiveram a combater no mato. Eu sou um exemplo claro disso: Não combati no terreno, mas muitos homens morreram-me nos braços e ainda sofro bastante com isso.

DESISTIU DE ESTUDAR MEDICINA PARA SE DEDICAR AO MARKETING

Quando recuperou da primeira operação ao estômago, no Hospital da Estrela, e pendurou a farda, Hugo Coimbra desistiu da sua actividade profissional e da Medicina. Mudou de vida e formou-se em Gestão e Marketing. Fez o doutoramento nesta área nos EUA. Pouco depois de regressar de África, casou e teve uma filha, mas viria a divorciar-se. É director do Instituto Natural da Maia e orientador de doutoramentos. Já foi docente na Universidade Católica de Viseu, director de um jornal de Viseu e, durante cinco anos, presidente do Conselho Científico do Instituto Superior de Fafe.
Hoje faz a sua vida entre o Porto e Santa Comba Dão.
Na juventude jogou futebol no Académico de Viseu e noutros clubes da região.