sexta-feira, 3 de abril de 2009

VOO 894 A VIDA UMA ENFª.PARAQUEDISTA NA GUERRA,AINDA HOJE TÃO MAL RECONHECIDA



Giselda Pessoa
2ºSarg.Enfª.Paraquedista Guiné
Lisboa



A DAR AO AMBU

A actividade que nós, enfermeiras pára-quedistas, desenvolvíamos no Teatro de Operações da Guiné, proporcionava-nos por vezes momentos de grande realização profissional. As características particulares da geografia do território em parte também ajudavam. Havia bastantes aquartelamentos a menos de 30/45 minutos de voo do Hospital de Bissau, o que significava que, desde o pedido da evacuação até à entrada do evacuado no hospital poderia decorrer, nesses casos, um período máximo de duas horas, com a forte possibilidade de a evacuação ter o apoio de uma enfermeira, o que aumentava um pouco mais as hipóteses de sobrevivência do evacuado.
Também o facto de o tempo gasto numa evacuação ser mais curto que noutros territórios aumentava a disponibilidade das enfermeiras para fazerem mais evacuações e garantia assim uma maior qualidade dos serviços prestados.
Estou convencida que, comparativamente com os outros Teatros de Operações, essas características permitiam que em igualdade da gravidade do estado dos evacuados, o ferido tivesse mais hipóteses de sobreviver no território da Guiné - possibilidade de maior apoio do pessoal de enfermagem e menor distância a percorrer até à unidade hospitalar.
Assim, viu-se muitas vezes evacuar feridos em estado desesperado que, devido ao apoio rápido recebido, conseguiam sobreviver contra todas as expectativas. Essas "vitórias" davam às enfermeiras uma grande motivação para prosseguir o seu trabalho.


Legenda
:Mapa do Guidaje
Foto:Giselda Pessoa (direitos reservados)


Lembro-me de uma evacuação que fiz a Guidaje, com essas características. Estávamos em 1972 e fomos chamados para uma evacuação de um ferido militar em estado muito grave. Tratava-se de um cabo enfermeiro do Hospital Militar de Bissau que, no período de férias do enfermeiro colocado em Guidaje, o tinha ido substituir no seu serviço. Estava quase a acabar este destacamento em Guidaje quando teve que ir socorrer um milícia local, o qual tinha pisado uma mina numa zona próximo do aquartelamento, de que tinha resultado a perda de uma perna. Quando ajudava o milícia na sua deslocação para o quartel, aquele teve a infelicidade de pisar uma segunda mina, o que provocou a perda da segunda perna, bem como a amputação de uma das pernas do enfermeiro.
À nossa chegada verifiquei as dificuldades em que o cabo se encontrava, pois tinha perdido bastante sangue, os camaradas não tinham conseguido ainda pôr-lhe o soro e tinha dificuldade em respirar pois encontrava-se num estado de extrema debilidade.
Coloquei os dois feridos nas macas colocadas na traseira do DO e dediquei a minha atenção ao seu estado, enquanto voávamos para a Base. Curiosamente, o milícia encontrava-se mais estável, apesar de ter tido as duas pernas amputadas.


Legenda:Bomba manual usada para aumentar o fluxo de ar ao paciente,designada por Ambu. Foto:Giselda Pessoa (direitos reservados)

Quanto ao cabo enfermeiro, consegui finalmente colocar-lhe o soro e dada a sua dificuldade em respirar coloquei-lhe o Ambu[1], que não é mais que uma bomba manual usada para aumentar o fluxo de ar para o doente e consequentemente a sua oxigenação.
Foi um voo extremamente duro - para o doente, claro, e para mim, que tive que dar permanentemente ao Ambu, que o estado do doente assim o exigia.
Em casos graves como este, podíamos decidir pela transferência do evacuado para um AL-III, que recebia o evacuado na placa da BA12 e o transportava directamente para o hospital. Assim fizemos, transferindo o ferido para o heli e dirigindo-nos para a placa do hospital, de onde o levei directamente para o bloco operatório, onde era aguardado.
Devo dizer que durante uma ou duas semanas continuei a sentir dores nos braços , devido ao esforço feito com o Ambu durante toda a evacuação. Mas o meu trabalho continuou e eu fui esquecendo este episódio.
Poucas semanas depois, quando preparava no Hospital de Bissau a evacuação dos feridos para Lisboa, a fazer no DC-6, percorria o Serviço de Recuperação do Hospital quando subitamente ouvi atrás de mim um grito estridente: "Devo-lhe a vida!". Recuperando do susto, dirigi-me ao doente, que me confirmou ser o cabo evacuado de Guidaje, que tanto trabalho me tinha dado. Disse-me que durante a evacuação tinha conseguido abrir os olhos durante uns momentos e, tendo-me reconhecido (ele era do Hospital de Bissau), pensou: "Ao menos morro ao pé de alguém conhecido". Mas não tinha morrido e estava até bastante melhor; e pelo grito que deu naquele dia, estou convencida que terá conseguido ultrapassar totalmente esta fase má da sua vida.

Giselda Pessoa
[1] AMBU - Airway Maintenance Breathing Unit - Bolsa dotada de válvula unidirecional permitindo criar um fluxo contínuo através de sua compressão.

VB:A realização profissional destas senhoras,componentes de um efectivo militar que operava no TO da Guiné,era o socorrer as vitimas de ferimentos diversos,que passou,muitas vezes,pela restituição à vida daqueles cujo a esperança para tal consideravam remota.
Recordo aqui um caso recente em que conseguimos,passados 36 anos,juntar telefónicamente,o reencontro pessoal está para breve,o Manuel Bastos(1),atingido por uma mina em Mueda,que lhe causou a amputação de um membro inferior, e a Enfª Piedade Gouveia(2) que fez a sua evacuação para o hospital de Mueda,assistindo no bloco operatório à intervenção cirúrgica a que ele foi sujeito.
Deixo aqui esta lindíssima frase do Manuel Bastos demonstrando o seu reconhecimento por aquelas senhoras que tantas vidas salvaram e que tão esquecidas foram:

" resta-me o conforto de ter conhecido no momento mais dramático da guerra o sorriso redentor desta enfermeira pára-quedista "


(1)
Fur.Mil. Operações Especiais ADFA
(2)2ºSarg.Enfª Paraquedista

Voos relacionados:

837
-A Enfermeira que vinha do Céu "Manuel Bastos "
850-A Enfermeira que vinha do Céu- A Descoberta "João Carlos Silva"
873- A Enfermeira que vinha do Céu-Conclusão. "João Carlos Silva"