domingo, 3 de maio de 2009

VOO 951 ATÉ PARECIA CHAMPANHE.



Aniceto Carvalho
MMA, 1952
Angola, Moçambique
Montijo

Até Parecia Champanhe

Mais coisa menos coisa, a Penalva ficava dentro da zona de treino: uma povoação logo a seguir à Moita, para Palmela, antes de Coina. Uma região rica. Mais por paródia, claro está, que por necessidade, cerca de uma dezena de quilómetros em qualquer direcção, era por ali que nós andávamos aos melões, às melancias, às uvas, a tudo o que aparecesse, conforme a época. Não roubávamos nada... os camponeses é que se pelavam para nos encherem o helicóptero, só para ver a máquina de perto.
O pai do Sanz passava lá as férias, os fins de semana, parece que também os dias de folga, numa propriedade, não sei se dele próprio, se alugada, se como uma espécie de feitor. Fosse como fosse, era ele que tomava conta daquilo. Era um homem de pouca robustez, de cor macilenta, como o Sanz, a indiciar doença latente, da qual, como também o filho mais tarde, viria morrer ainda relativamente novo.
A visita do Sanz tinha a ver com o São Martinho; coincidia com a matança dum porco, com a prova da água pé. O Sanz era o cicerone. O Assunção, o piloto e seu grande amigo, era o convidado de honra; o Vilela e eu, como ele próprio cabos especialistas e mecânicos da esquadra, também não podíamos ser ignorados.
Tresandava a carne assada na brasa... ao absorver o aroma das árvores de fruto em redor, íamos caindo de costas, mal tínhamos acabado de sair do helicóptero.
Um tambor de cinquenta litros cortado ao meio de alto a baixo, fumegava à entrada dum telheiro; uma grelha de febras pingava no lençol incandescente. Chamas de um azul metálico emergiam através dos nacos de carne...
- É para fazer boca - justificou o anfitrião, enquanto o filho nos estendia três malgas de água-pé a fervilhar. Colocou um prato de febras em cima da mesa, exibiu no ar duas chouriças. - Ponho-as já no grelhador, ou ficam para depois?... Que lhes parece?
O Vilela acenou a cabeça. O Sanz respondeu que "não se perdia nada, que era melhor." O piloto, com as mãos ocupadas com uma febra e um bocado de pão, detectou um queijo de Azeitão... Saboreou um gole de água-pé, fez um ahhh prolongado.
As chouriças chiavam no grelhador. Chamei a atenção do pai do Sanz.
- Foram picadas - respondeu ele. - Não há problema.
Entre dois dedos de conversa, "passa aí uma fitinha desse presunto", "deita aí mais um gole", o Vilela levou-me à porta, para constatar à claridade o "rosé" da quarta tigela que acabava de encher. Com o Sol da tarde a reflectir no líquido, declarou:
- Isto é uma preciosidade!... - Contemplou as bolhinhas na parede da tigela, passou-o por baixo do nariz, absorveu o aroma gasoso. - É melhor que champanhe.
Como eu nunca tinha bebido champanhe, e sabia que ele também não, fiquei com a impressão que a comparação era um bocado excessiva. O Vilela prosseguiu:
- Com um petisco destes, assim no campo, era capaz de beber um almude disto...
- Estás a exagerar, claro... ainda só bebeste três malgas...
O Vilela interpretou mal. Apontou-me o enorme nariz adunco como uma pistola:
- Estás parvo, ou quê?... - atirou. - Isto não faz mal nenhum. Sou capaz de beber litros de água-pé e ficar tal e qual. É como quem bebe um clister... mija-se e pronto.
Deu meia volta, andou dois passos, cambaleou na penumbra. Virou-se para trás.
- Quando um gajo sai de repente do Sol para a sombra, parece que fica bêbado.
Com o chão a ameaçar fugir-me debaixo dos pés após a terceira tigela, mas ainda em condições de saber que a "preciosidade" não era, afinal, tão inofensiva como o Vilela dizia, comecei a equacionar que, se também ia sair dali a voar naquele helicóptero, teria de fazer qualquer coisa quanto antes: É que eu nunca iria com o piloto bêbado... mas por outro lado, não só criaria uma discórdia logo à partida, como depois, corresse o voo bem ou mal, nem com a minha consciência ficava de bem.
O Assunção estava entre as dez e as onze. Controlado, ao que parecia. Ter de o chamar a atenção era uma decisão que não me agradava... Não foi preciso lembrar-lho duas vezes: Meteu a última rodela de chouriça na boca, engoliu o que restava na malga, por um pouco nem se despedia. Quando os outros dois chegaram ao helicóptero eu estava sentado ao lado dele, atrás do duplo comando: Julgava eu que, pelo sim pelo não, se as coisas degenerassem, talvez eu conseguisse pôr o "estojo" inteiro no chão.
Até parecia que o Sanz tinha previsto todos os pormenores: O espaço era amplo; uma colisão nas árvores numa descolagem mais tremida não era muito provável.
Embora bem aviados, segundo me pareceu, a pilotagem do Zé foi impecável... mas o pai do Sanz devia estar tão bem tratado que nem lhe passou pela cabeça que poderia muito bem ser a última vez que via o filho com vida.
Chegar à unidade com o depósito cheio após duas horas de voo, acontecia, por vezes... como é que nós chegámos inteiros naquele dia, ainda está por desvendar.

Aniceto Carvalho


JC:
O Companheiro Aniceto Carvalho brinda-nos com este seu texto que penso ser oportuno para tentar desanuviar um pouco o ambiente nestes tempos algo conturbados. A mim faz-me pensar no jovem aviador, na irreverência da juventude, na aventura, naquela centelha de glória (não era para todos chegar e partir de cena em Helicóptero), aquele querer mostrar que é forte, mas também a chamada para o “mundo real”, enfim, lembra-me um pouco da minha juventude de Zé Especial (não necessariamente na forma, já que o meu tempo era outro).
Se estão disponíveis para descomprimir um pouco e se também vos faz lembrar alguma aventura típica do Zé Especial, então gostaria, neste tom mais leve, de vos ver soltar pelo menos um sorriso.

Saudações Especiais