terça-feira, 15 de setembro de 2009

VOO 1165 A CARTA.



Manuel Bastos
Fur.Mil. Op.Esp.
Coimbra

A Carta
Não tenho nada para fazer hoje. Não tenho nenhum livro para ler, nenhuma música para ouvir. Apetecia-me escrever uma carta a alguém. Alguém que vivesse do outro lado do mar. Alguém que já se tivesse esquecido de mim há muito, e que ao receber a carta parasse num leve sorriso de surpresa. O envelope com a minha caligrafia e a carta lá dentro. – De quem é? – Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.
Nada importante. Uma carta minha que tivesse levado quinze minutos a escrever e quinze dias a chegar. Queria interromper a vida de alguém comuma carta que não fosse importante, que essa pessoa guardasse no bolso para ler mais tarde, quando tivesse tempo, e se esquecesse disso, e deixasse no bolso do casaco durante muito tempo, e mais tarde, num dia em que não tivesse nada para fazer, nem um livro para ler, nem uma música para ouvir, se lembrasse repentinamente que ainda não a tinha lido, e a fosse procurar por todo o lado numa ansiedade de quem busca uma coisa que se tornou valiosa só porque não se sabe do seu paradeiro.


A letra a azul sobre o papel creme, letra de caneta de tinta permanente, de caligrafia esmerada, aqui e ali a esborratar um pouco, e a assinatura no fim. Uma assinatura tentada no ar em jeito de ensaio antes de a desenhar no papel, rápida e agilmente.
Nada de importante. Apenas uma carta de alguém que se conhece mal ou que já se esqueceu quase totalmente. Queria escrever uma carta assim. Uma carta sem uma notícia urgente, sem um pedido desesperado, sem uma declaração de amor, sem a intenção de cumprir sequer uma formalidade.
– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal. Os olhos preguiçosos a verem o corpo do texto sobre o papel, sem lerem ainda. Do lado esquerdo impecavelmente alinhado e do lado direito sem respeitar a margem. Às vezes ultrapassando-a para escrever a palavra toda, apertando as letras, outras vezes, por julgar que não cabia, deixando um espaço excessivo.
Os olhos preguiçosos pousam na assinatura antes de lerem o texto. Um leve sorriso sarcástico.
– Quem será mesmo esse meu primo português que faz uma assinatura tão pretensiosa numa carta informal.
Queria escrever uma carta a alguém. Cumprindo um ritual. Ao fundo na Elísio de Moura o som dos carros no asfalto molhado resgatam-me, não sei de que memórias, a lembrança do mar. A cadência das ondas como um pulsar de desalento irremissível. Uma coisa tristíssima sem motivo nenhum. A minha avó a dar um ai que parecia a alma a rasgar. – Que tristeza é essa ‘vó? – Não estou triste meu filho, é o hábito. Os carros a passarem na Elísio de Moura como se a tristeza da minha avó fosse um hábito tão grande que agora enche os momentos de tédio em que me apetece escrever uma carta por não ter nada que fazer.

A carta nas mãos de alguém do outro lado do mar. Uma varanda sobre a vegetação tropical e uma carta que ainda está para ser lida. Uma carta de quem sentiu a solidão da noite e um apelo irresistível para comunicar com alguém. Não uma pessoa íntima que sabe quase tudo de nós. Não uma completa estranha que não quer saber nada de nós. Uma pessoa a quem a carta desperte para uma memória desvanecida de mim, que não se surpreenda com as minhas palavras, mas sim com o meu interesse em dizer alguma coisa.
O senhor Luís da Loja vinha de bicicleta entregar o correio e fazia soar a corneta apertando o punho de borracha à porta dos destinatários. Um toque prolongado como uma lamúria e dois breves e alegres no fim. Naqueles três toques ele resumia o teor de todas as cartas; as notícias dolorosas que perduram mais tempo na memória, e as notícias boas que deixam um breve lampejo de felicidade, como se fosse obrigatória a felicidade, e não tivéssemos que nos sentir gratos por ela. O senhor Luís da Loja conhecia o remetente e o destinatário de todas as cartas, sabia de todos os encontros e desencontros da vida dos correspondentes; era como o médico de família da saudade. – Uma carta do seu filho; quer que lha leia? E os olhos analfabetos a sorrirem. – Sim, p’la alma dos seus qu’eu no sê uma letra. Que diz ele?
Não queria que recebessem de mim uma carta assim. Não queria despertar sentimentos fortes em ninguém. Queria apenas pousar de leve na vida de alguém, chegar e partir como uma brisa, como uma folha solta trazida pela aragem e que deixa uma breve sombra na leitura de um jornal, que distrai de uma dor por um minuto, que alivia uma mágoa ou quebra um riso. Que despertasse apenas uma breve curiosidade, que levasse apenas a um ténue esforço de memória para alguém se lembrar de mim e me imaginasse a escrever a carta, não como eu a tivesse escrito realmente, mas como a sua imaginação me recriasse a fazê-lo, de modo a que eu passasse a ser apenas um produto da sua fantasia, e assim, me tornasse em algo íntimo. Íntimo, mas sem a partilha física dos corpos, sem a mútua devassa dos afectos.
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: “Uma carta do seu filho”?
O som dos carros no asfalto molhado ao fundo da avenida a resgatarem-me o som do mar do fundo da memória como algo irremissível, e eu a pegar na velha caneta de tinta permanente e a escrever: Cara prima,…
Quem sabe, talvez daqui a quinze dias do outro lado do mar, alguém como o senhor Luís da Loja, a buzinar a bicicleta:
– Tem uma carta pra você do exterior. De quem é?– Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.