quinta-feira, 12 de novembro de 2009

VOO 1280 "CRONICAS SOLTAS DE UMA GUERRA EM ÁFRICA"(II)


José Leal
Fur.PA Tete
Caminha

Jogo de andebol para esquecer.

O AB7,iniciais do Aeródromo Base 7,situado no Distrito de Tete,no norte de Moçambique, era uma unidade da Força Aérea com cerca de mil militares de várias especialidades.Tinha esquadrilhas de aviões ligeiros Dornier 27,vulgo DO’S, para abastecimento, transporte e evacuação de feridos, uma esquadrilha de T6,aviões de ataque ao solo, com bombas de fragmentação e napalm, isso mesmo, napalm, iguais ás usadas pelos americanos no Vietnam, que os nosso governantes diziam não utilizar, mas que eram o pão nosso de cada dia para os guerrilheiros da Frelimo e populações suspeitas.
Além destes aviões, havia também uma esquadrilha de Fiat’s, avião a jacto de ataque ao solo e outra de helicópteros, Allouette 3 e Puma.O AB7 ficava situado do outro lado da cidade de Tete, separado pelo Rio Zambeze, com distância entre margens de cerca de 1 Km. Do outro lado do rio ficava o Matundo e 1º quilómetros adiante, que se podia percorrer em estrada alcatroada-um oásis,-o Chingódzi, povoação onde o AB7 estava instalado. Cinco quilómetros mais à frente ficava a vila de Moatize, que além de ser a estação de caminho de ferro que dava ligação à Beira, era uma das minas de carvão mais importante de África.Moatize tinha muito movimento. Estavam aí sediadas companhias do Exército e talvez por causa disso, tinha cinema, piscina, restaurantes, campos de futebol e muita gente nova, filhos dos trabalhadores das minas. O pessoal da Base, assim era conhecido os militares da Força Aérea, muito do seu pouco tempo livre.À e ao domingo, a guerra parava para quem não estava de serviço, sendo alturas propicias para descontrair um pouco, praticando desporto.No ano de 1972, o AB7 conseguiu juntar entre os seus homens excelentes jogadores de andebol, oriundos das melhores equipas de andebol do continente, como o FC Porto, Belenenses e Beira-Mar. Fazíamos parte de uma equipa onde estavam também o Pascoal, o Correia, o Santos Jorge e outros cujo nome já se vai esvaindo no tempo. Era a melhor equipa de andebol de Moçambique, sem qualquer dúvida.
Os domingos à tarde – “O que é que você vai fazer domingo à tarde?”, cantava Roberto Carlos nas rádios, - eram por vezes o ponto de encontro das equipas do Exército, Marinha e Força Aérea, para jogar andebol.Íamos os todos almoçar a Moatize, num daqueles restaurantes ao ar livre com as mesas de madeira debaixo das ramadas, onde a ementa podia ser um frango à cafreal ou caldeirada de cabrito, regados com cerveja ou com os metropolitanos vinhos do Dão,Gatão, Lagosta ou Casal Garcia, aperitivo à maneira para os jogos de andebol.
Num certo dia de Novembro, o calor era muito como de costume, se vos disser que a temperatura rondava os 50ºC só estarei a errar por defeito. O ringue de cimento estava cheio para ver mais uma jogatina. Eram as meninas brancas que tentavam catrapiscar um namorado metropolitano e os pretitos que não perdiam um jogo, deliciando-se com as jogadas mirabolantes que o pessoal elaborava propositadamente e os fazia delirar – aqueles remates de costas eram o máximo, não eram Zé Leal?Nesse dia o adversário era o Exército e o jogo era renhido, dada a rivalidade que aumentava progressivamente com o desenrolar dos jogos. Todos queriam ganhar à Força Aérea, mas ninguém o tinha conseguido e ainda não era desta vez que queríamos dar esse prazer ao adversário. Por isso, todos os elementos tinham que estar disponíveis para poder preservar o prestigio dos maiores.Já lá estavam quase todos e digo quase todos, porque faltava o Serafim.O Serafim era um jovem Alferes Miliciano, piloto de helicópteros da nossa idade, com 21 anos.Naquele dia, na Base, o trabalho foi muito duro. Várias evacuações de feridos “zero horas” – sinal de urgência máxima, significando que algures numa zona do mato, alguém lutava desesperadamente com a morte e portanto todos os segundos eram importantes para a sua sobrevivência. Havia sempre pilotos de serviço permanente, mas como nesse dia não chegavam para as encomendas, o Serafim apesar de não estar de serviço, teve de alinhar.Às 5 da tarde o jogo começou sem o nosso homem e com este a decorrer já há cerca de 10 minutos, um zingarelho – o nome carinhoso como era tratado o helicóptero, - sobrevoa o campo em voo baixo. Ficou logo a saber-se que era o Serafim que já tinha chegado e ainda podíamos contar com ele. Entretanto, para espanto de todos, o jogo chegou ao fim e do Serafim nada.Como era previsível, mais uma vitória para os aviadores.Quando todos se preparavam para um banho retemperador e enfiar umas bazucas (era assim que chamávamos ás cervejas de 1 litro) no bucho, chega a notícia em ninguém queria acreditar e transformou uma saborosa vitória no campo na que foi, sem dúvida, a pior derrota sofrida na nossa carreira de desportista. O Serafim lerpou, na nossa gíria queria dizer isso mesmo que estão a pensar – morreu.O que é que se passou então? O serafim fez a evacuação, deixou os feridos no hospital, passou por cima de nós a avisar que vinha jogar e logo ali, entre o campo e a Base, caiu. Porquê, nunca se chegou a saber ao certo. Sabemos que o helicóptero explodiu com o embate no solo e o nosso amigo transformou-se de repente num archote. A queda foi vista pela torre de controle, a distância a Base era pouca e apesar dos nossos bombeiros terem demorado muito pouco tempo a chegar, já nada havia a fazer.Não voltamos a jogar andebol tão cedo.Regressamos num jogo com Fuzileiros, em Tete, e o Serafim estava em espírito, fazendo parte do sete inicial.