Manuel Lema Santos
1º Ten Reserva Naval, Guiné
Sintra
Meu caro Victor Barata,
Foi com enorme prazer que recebi a tua comunicação e aproveito para te devolver, em dobrado, e extensivo a todos os camaradas, os votos enviados. Não consegui resistir às imagens do vídeo de que me deste indicação e as lágrimas rolaram-me pela cara. Muitos dos camaradas da Marinha que ali, no Cacheu, honraram valores por que se bateram, já não estão entre nós para a devida apreciação de alguém que, louvavelmente, se lembrou dos marinheiros.
Alguns pagaram com a vida e outros regressaram diminuídos quando, nas LDM's, LFP's, LDG's, LFG's ou FZE's se empenharam no cumprimento das missões que o País lhes exigiu. Outros, felizmente vivos, sentiram e sentem no decorrer do tempo o definhar de ideias e valores que, ainda num passado recente, eram reflexo do sentir da sociedade em que foram educados e viveram.
Binta, representava para as LFG's, depois de deixar Farim rumo à Vila de Cacheu, para juzante, uma pausa para a preparação do acto seguinte, na escolta às LDG's que tinham deixado carga ou trocado companhias do Exército, até três normalmente, formadas por homens experientes mas cansados e desgastados psicologicamente, por outras idênticas integradas por homens ainda sem experiência mas de espírito fresco.
Normalmente, um grupo de combate de fuzileiros "ajustava" o dispositivo de segurança e o sentimento de que a FAP, com os nossos prateados vigilantes do céu, estava em situação de alerta-solo com comunicações permanentes connosco, sempre tornava o "cruzeiro" mais simpático.
Legenda: Harvard T-6 na pista de Cufar
Foto: 2ºTen RN Melo e Sousa, DFE 1, cedida por Manuel Lema Santos (direitos reservados).
Depois de cinco a seis horas de navegação e o desfilar das zonas especialmente "hospitaleiras" como Canjaja, rio Olossato, Porto de Batu (Tancroal), Jagali, Concolim, rios Sambuiá e Talicó, Porto Coco, Ganturé (Bigene), Iador, Barro, Canja, rio Armada, o Porto da Ponta de S. Vicente marcava, finalmente, como que uma fronteira para o abrandamento do dispositivo. Ainda mais para juzante, depois de Maca, rios Jol, Churo, Zagaia e Caboiana, lá aportávamos à Vila de Cacheu, agora já em zonas sem grandes sobressaltos.
Deve dizer-se que, até ao final da guerra, nunca a Marinha se deixou intimidar por emboscadas e ataques, mesmo com graves consequências e, nesse mesmo momento, voltava atrás repetindo a passagem mais uma ou duas vezes, num desafio permanente. Havia ainda e deve ser dito que, grupos de combate de fuzileiros embarcados, por vezes queriam lançar os botes à água e ir a terra "acertar as contas".
Tudo pouco conhecido, ainda menos divulgado e convenientemente esfumado no tempo, que tudo limpa. Borrachas políticas com tecnologia de ponta que permitem apagar Memória e História recente, à medida de mal disfarçados interesses e construídas com o sofrimento e amargura de quem não consegue esquecer.
A excelente qualidade da edição e montagem quase não deixa perceber algumas fotos, que até conheço, bem "misturadas" no filme. A música aviva o ambiente e embora talvez optasse pessoalmente pela música dos Rolling Stones, o "Paint it Black" do "Good Morning Vietname", o autor foi o Jorge Felix e está de parabéns pelo invulgar trabalho executado.
Claro que vos estou a pedir que me permitam inserir o vídeo no blogue que vai passar a estar também ao serviço da nossa Associação. Fá-lo-ei com a devida referenciação e até gostaria de incluir o texto completo do Jorge Félix se tal for possível. Será uma honra!
Envio-te um slide da clareira do Tancroal, no Cacheu, local obrigatoriamente batido pelo nosso fogo de reconhecimento, tentando evitar que os sinistros RPG's 2 e 7, metralhadoras ligeiras, pesadas e canhão sem recúo se fizessem anunciar nas calorosas manifestações de boas-vindas do PAIGC. Foram muitas vezes de graves consequências e, alguns casos, dramáticas.
Legenda: Clareira do Tancroal no Cacheu
Foto:Cedida por Manuel Lema Santos (direitos reservados).
Em 1968, pelas 20:30, a LFG "Lira" juntamente com a LDG "Alfange", esta com três companhias embarcadas que deixavam a zona, de Binta a CCaç 1546, e de Farim, a CCaç 1548 e a CCS, toda do BCaç 1887, ali foram violentamente emboscadas. Se alguém daquelas unidades ler estas linhas, recordar-se-á certamente, pois terá sido uma despedida pesada para quem regressava ao país e à família. A LDG "Alfange" foi mandada retroceder e aguardar em Binta.
A LFG "Lira" que protegia e escoltava a LDG "Alfange" foi atingida com 2 granadas de RPG 7, sofrendo 1 morto, 4 feridos graves e três ligeiros. Ainda navegaram até à Vila de Cacheu durante cinco horas, em condições muito difíceis, como se pode imaginar e sem comunicações, sem girobússola e com avarias diversas, além das baixas.
Ali, depois de estabelecerem comunicações, a vossa rapaziada dos helis evacuou, pela 01:00 da manhã, os feridos graves e um DO 27 evacuou os restantes ao raiar do dia. No dia seguinte, a LFG "Sagitário", entretanto saída de Bissau, foi buscar a LDG "Alfange" com o apoio da Força Aérea.
Duas semanas depois os Destacamentos de Fuzileiros Especiais 10 e 12 com a LFG "Lira" (novamente) e a LFG "Cassiopeia" ali voltaram, varrendo a área e infligindo ao inimigo 12 mortos, 3 feridos e 2 elementos capturados além de habitações várias e equipamentos destruídos.
Foi assim a guerra para ambos os lados. Estilhaços, sangue e o cheiro a morte por todo o lado. Meu camarada de curso e imediato da LFG "Lira", o 2TEN RN Jorge Calado Marques, falecido o ano passado, ficou surdo de um dos ouvidos no ataque sofrido, projectado pelo sopro do impacto contra a chapa interior da ponte.
Aqui deixo algumas fotos da sua autoria, testemunho mais que eloquente de algumas das mazelas. As do navio claro, porque muitas outras não ficaram documentadas. Ficarão todos, para sempre, registados na nossa memória.
Foto: 2ºTen RN Jorge Calado Marques, cedida por Manuel Lema Santos (direitos reservados).
Foto: 2ºTen RN Jorge Calado Marques, cedida por Manuel Lema Santos (direitos reservados).
Daqui deste lado, agora da terra e não do mar, o meu cumprimento a todos vós especialmente a ti que me enviaste esta Árvore de Natal e ao Jorge Félix que a construiu e iluminou.
Um abraço, Manuel Lema Santos
Voos de Ligação:
JS: Lema Santos é um previlégio irmos publicando e registando para memória futura estes testemunhos vividos em tempos complicados, para que se saiba, e que ainda por cima confirmam a entreajuda entre os ramos das FAs e o apreço recíproco pelas missões efectuadas. A união faz a força.
O facto de pretenderes inserir o vídeo no teu Blog é a melhor prova de que a mensagem do Jorge Félix passou e foi reconhecida.