sábado, 17 de julho de 2010

Voo 1838 A PARTIDA E O REGRESSO (3) JORGE NARCISO





Jorge Narciso
Esp.MMA Esqª.Canibais

Lisboa





Olá Caro Victor
Lançavas, há dias, um desafio ao pessoal do blogue, para o relato das experiências vividas na chegada à Guiné, a que aliás alguns companheiros já responderam.
Já depois disso e em conversa telefónica que mantivémos (sobre a Rosa Serra, lembras-te concerteza), eu te prometia que logo que tivesse uma oportunidade responderia a tal desafio.
Aproveitando um daqueles momentos de pausa que, quando queremos, sempre se inventam, preparava-me para alinhar um texto para enviar.
Antes porém "naveguei" um pouco, passei pelo blogue e... dei com o voo 1836 e nele (através de link) o filme sobre a Guiné feito por repórteres franceses.
Já tinha visto uma pequena parte dele (não sei onde, talvez aqui no blogue!) mas não com todo esta dimensão.

E que vi ?:

http://www.ina.fr/playlist/sport/ma-premiere-selection.248492.fr.html

Nos primeiros minutos um apresentador em francês, enquadra o filme com o suporte visual em imagens da Guine, tomadas no essencial do lado pelo qual eu bem a conheci: do ar.
Imagens "mil" vezes repetidas na minha memória: Rios, bolanhas, lalas, matas, barcos navegando, movimento de tropa. E a cidade e gente viva a circular numa aparente vivência em "paz",
Na fase seguinte o apelo a minha atenção redobrou, a imagem passa a ser terrestre e capta um Heli aterrado e outro, e mais outro a aterrar num pedaço de mato, Sai gente que naturalmente não conheço mas o Piloto fica visível, quem é? será isto no meu tempo ? Pareceu.me o Ramos (que era pequeno) mas também o Falé (que contrariamente era enorme) mas sentado e com os auscultadores colocados não é fácil.
E segue-se, interpretado pelos homens presumivelmente acabados de desembarcar, após uns momentos de calma progressão no terreno, um episódio da pura e dura guerra com que nos fizeram conviver, aqui traduzida em alguns dos seus mais marcantes elementos:
Tiros, rebentamentos, correrias para abrigo e posiocinamento, gritadas vozes de comando, mais tiros e finalmente.. o silencio, apenas quebrado pelo sons das ,também elas perturbada, aves. E com ele a percepção dos terríveis efeitos do entretanto ocorrido; o esgar dos feridos, os gritos lancinantes de quem se apercebe que parte do seu corpo foi estropiada, a sempre impressionante imagem da morte em toda a sua crueza e violência, e o espelho de tudo nos rostos arregalados de espanto e impotência dos fisicamente (apenas fisicamente) ilesos. Sina comum a todos e a cada dos que nesta realidade viveram, em sessões continuas.
Segue-se a natural reacção. Ao mesmo tempo que com a dignidade possível se recata um cadáver, se acode aos feridos, dando-lhes os cuidados primários possíveis e as palavras de incentivo, tantas vezes enganando uma esmagadora realidade como a que é mostrada, procurando agarrá-los à vida, enquanto não chega o apoio pedido pelo rádio, que entretanto se vê chegar.
Primeiro um sobrevoo de reconhecimento dum T6 e logo de seguida lá volta a imagem de mais um Heli que aterra, logo seguido de um outro.

E embora sentado nesta minha confortável cadeira, com um arrepio espinha abaixo sinto-me a mim próprio, como o fiz incontáveis vezes naquelas condições, a aterrar naquele cenário
E, não sendo eu, vejo saltar logo do primeiro heli o INFANTE, e enquanto saca uma maca sai também a ROSA SERRA e rapidamente o ferido é embarcado, seguramente bem assistido e transportado.
Entretanto aterra o outro Heli e o mecânico é agora o CAROTO. E outro ferido foi assim evacuado.
E de novo me sinto, como eles, a fazer a dramática e pungente viagem de retorno até Bissau e estranhamente, ou talvez não, revivo uma sensação que o filme, apesar do seu impressionante realismo, não consegue nem pode transmitir:
a do(s) Cheiro(s).
Cheiro à mistura do sangue, da carne queimada e duma indescritível mescla de fluidos corporais.
Cheiro amplificado pelo calor, pela humidade, pelo pó e... pelos sentimentos e olhares de dor, apelo, angustia e desespero,
UM CHEIRO A MORTE, que jamais se esquece.
Resta dizer que só não estive ali por mero acaso, porque:
O Infante que até é da minha incorporação (3ª/66), com quem vim para Sintra depois da especialidade, com quem fui para a Guiné no mesmo voo e que regressou uns dias antes de mim, passou praticamente todo o seu tempo na linha dos Helis, comigo.
E o Caroto apesar de mais novo (2ª/67), também ele esteve em Sintra e tendo ido mais cedo que nós para a Guiné, também ele integrou um pouco mais tarde a linha dos helis, connosco.
Fomos pois companheiros, contemporaneos e como amigos nos vamos contactando e reencontrando por aí.
Aliás eles os dois após a comissão (eu não pois que saí logo que regressei da Guiné), fizeram ainda o resto do tempo em Tancos e... na linha dos Helis.

Legenda: Dia 29 de Maio de 2010,em Penela,no Almoço dos Especialistas da BA 12,,Da Esqª/Dirª.Carloto,Ferreira,Narciso,Infante,Gabriel e Lucas.

Estamos os três com outros companheiros numa foto publicada aqui no blogue aquando do convívio de Penela.
A Rosa Serra, a quem vou tentar informar do video, reencontrei-a ao fim de 40 anos em Maio, no convivio da Tabanca Grande.
Acabei de falar com o Infante e o Caroto ao telefone e que após visionarem o filme confirmaram o que atrás referi.
Mais o facto que estes acontecimentos se deram já 1970 adentro, algures na zona de Teixeira Pinto, durante uma operação em não era suposto haver contacto, porque acompanhada por estes repórteres franceses, contacto que afinal se registou, aliás bem feio pelo que se vê e de que resultaram dois mortos.
Para finalizar um esboço de resposta ao teu apelo:
A minha praxe de chegada à Guiné, foi perguntarem-me donde vinha e que tinha feito antes, ao que eu respondi que de Sintra e da linha da frente dos T-37.
Face àa "semelhanças", de imediato me enviaram para uma "Linha" no caso dos Alouette III, aparelho que nunca me tinha sido "apresentado" antes.
Face à insuficiência de pessoal que na altura se registava, os existentes já com "nó" e naturalmente desejosos de sair dali para fora, fui "largado" e fiz o primeiro voo 2 ou 3 dias depois de chegar e menos de uma semana depois estava, ainda com a farda amarela, a fazer uma evacuação à zona (Buba), na qual fiquei entre dois voos e em que se registaram treze feridos e um morto.
Para baptismo... o seguimento fica para um dia próximo.
Vejo agora que isto ficou grande que se farta e ainda por cima já é tarde e não dá para rever.
Fica ao teu critério o que queiras aproveitar

Um abração

Jorge Narciso
Logo me apresentaram um aparelho que ali vi pela primeira vez (o Alouette III).

Voos de Ligação:

Voo 1822 A Partida e o Regresso(1) - Carlos Nóbrega
Voo 1834 A Partida e o Regresso(2) - Jorge Mariano

VB: Jorge,antes de mais as nossas desculpas pelo atraso do "voo"mas neste altura é um pouco complicado ter o "tráfego"normalizado. Mais uma vez nos delicias com mais um dos magníficos textos a que já nos habituaste. Não tenho,nem necessita,de fazer qualquer tipo de comentários a este tão precioso voo.
Sobre o que nos dizes do sobre o "extenso voo",devo dizer-te que é classificado por nós como de "médio curso" ,como tal tens que te começar a lançar nos de longo curso.