segunda-feira, 2 de maio de 2011

Voo 2315 O 1º DE MAIO DE 1974 E A FAP.



Alfredo Cruz
Ten.Gen.Pilav
Com.Op.Forças Armadas dos Açores
Lajes-Tereira



Hoje é Tenente General, actual Comandante Operacional das Forças Armadas nos Açores: Alfredo da Cruz, o tenente que lançou os cravos sobre os manifestantes no Estádio Primeiro de Maio em 74


Eram por volta das 11h30 do dia 1 de Maio de 1974, faz hoje 37 anos. O Tenente Miliciano Alfredo Pereira da Cruz estava no antigo ‘AB1 – Aeródromo Base Nº 1’, onde hoje está o chamado aeroporto de Figo Maduro. Encontrava-se na messe de oficiais, em instalações onde hoje se encontram serviços da TAP quando recebeu um telefonema do comandante de esquadra de helicópteros ‘Puma’ a convocá-lo para uma missão. “Cruz, é preciso ir fazer uma missão. Queres ir?....”
O então Tenente Miliciano não pensou duas vezes e respondeu logo afirmativamente. O comandante de esquadra comunicou-lhe que iria aparecer alguém com uns cestos de cravos “e a tua missão é sobrevoar o Estádio Primeiro de Maio por volta do meio-dia e meia e largar os cravos sobre as pessoas”.
A resposta do Tenente foi um “está bem…” tranquilo que escondia alguma emoção pelo encargo assumido.
Vivia-se ainda o período quente pós 25 de Abril, com as populações a manifestarem regozijo e as estruturas sindicais a afirmarem-se no Dia do Trabalhador.
“O facto é que fiquei à espera e, mais tarde, lá apareceram as pessoas (lembro-me perfeitamente) com uns cestos de verga grandes cheios de cravos e, à hora combinada, largamos para o Estádio Primeiro de Maio”, descreve o agora Tenente General da Força Aérea e Comandante Operacional das Forças Armadas, nos Açores.
“A imagem profunda que ainda tenho”, diz Alfredo da Cruz, “é da alegria e do regozijo de toda aquela gente que enchia por completo o estádio. Eles seguiram a trajectória do helicóptero, viram-no descer suavemente e largar os cravos…”
Estas imagens foram vistas há cerca de dois anos pelo agora Tenente General que é, neste momento, um dos últimos dois pilotos de combate no Ultramar ao serviço na Força Aérea. “Estava a ver umas imagens do 25 de Abril na televisão e apareceu o helicóptero a lançar os cravos. Eu sei que era eu que estava lá…”, acentua.
O Tenente estava, há 37 anos, longe de saber que, ao aceitar esta missão, iria passar o 1º de Maio quase em jejum. “Como fomos fazer a missão à hora de almoço, e quando regressei para aterrar, almoço já não havia. Fomos tomar banho à residencial onde estávamos, em Saldanha e decidimos ir jantar e estava tudo absolutamente fechado. Foi uma noite com uns cigarrinhos, aguinha e nem um café…”
Apesar de tudo, conclui Alfredo da Cruz, “vivi aquele dia com enorme alegria. Foi uma coisa espantosa lançar cravos sobre os populares”, completa. E muitos destes populares deixaram o ‘Primeiro de Maio’ de cravo na mão ou à lapela como símbolo da implantação da democracia e liberdade em Portugal.

Do 25 de Abril de 74
ao 25 de Novembro

Trinta e sete anos depois, o agora Tenente General Alfredo da Cruz, Comandante Operacional das Forças Armadas nos Açores, não esconde alguma cumplicidade com o 25 de Abril de 1974, apesar de, na altura, ser Tenente Miliciano.
O General pertence ainda à geração da Força Aérea que combateu em África. Era piloto do helicóptero ‘Alouettes III’ que realizava missões de transporte táctico em operações de helitransporte e heliassalto, de transporte logístico, de evacuação sanitária e de apoio pelo fogo. No seu curriculum tem 800 horas de combate em África.
Quando regressou a Lisboa, após a missão de dois anos na frente de combate de Niassa, em Moçambique, veio para Portugal sem vontade para regressar a África para mais uma missão. “Gostava de voar, mas também estava consciente do que era a guerra e não estava para o que acontecia” no período anterior à revolução dos cravos.
O 25 de Abril apanha-o de surpresa, mas nem tanto. “Logicamente que a operação do 25 de Abril foi desenvolvida pelos capitães do quadro de oficiais e uma das coisas que se evitava era falar da sua preparação com tenentes milicianos”. Mas “havia muitos boatos” em todo o período entre o 16 de Março e o 25 de Abril. Lembro-me de uma vez ter encontrado um amigo (homem dos comandos) que combateu comigo em África e termos falado do 16 de Março. Ainda me recordo das suas palavras: “Não te preocupes, vamos tirá-los de lá…”. Referia-se então, entre outros, ao Major Monge e a Vasco Lourenço que tinham ficado presos a seguir ao 16 de Março.
“Por isso, para mim, quando aconteceu o 25 de Abril, a operação era o resultado de tudo o que estava a acontecer”, concluiu.
Alfredo da Cruz viveu mais de perto o 25 de Novembro de 1975 quando já estava na Academia Militar. “Havia duas correntes nas Forças Armadas. Uns que entendiam que a situação como estava não podia continuar e que era preciso fazer alguma coisa; e outros, ligados às forças revolucionárias, ao PC e à corrente de Otelo Saraiva de Carvalho. E houve o ponto de ruptura”.
Na Academia Militar, “eu e um grupo de camaradas tomámos uma opção e dissemos: ‘Bem, eu não quero isso para o meu país’.
Na altura, Alfredo da Cruz tinha 25 anos, “mas era um homem maduro. Fui para África com 21 anos e quando voltei a Lisboa com quase 24 anos não era a mesma pessoa. A guerra modifica completamente as pessoas. Saio daqui um miúdo e regresso um homem. Estava absolutamente consciente…”
Por isso, no 25 de Novembro, prossegue, “tomámos a opção por um dos lados, sabendo logicamente que, ao tomar esta decisão, poderíamos estar a pôr em causa toda a nossa carreira enquanto militares. Felizmente para Portugal, as coisas correram para o nosso lado”.
“E se temos hoje um regime democrático e vivemos em liberdade – esta é a minha opinião – isso deve-se, essencialmente, às forças que tiveram um papel importante no 25 de Novembro (o chamado grupo dos nove) e todos os militares envolvidos, com a Força Aérea a desempenhar um papel muito relevante”.
Na altura, algumas bases militares, como Vila Real e Tanques, foram ocupadas mas, apesar disso, “conseguiu-se desviar uma série de aviões para Ovar, base que nunca foi ocupada e onde a Força Aérea estava operacional…”
“Alguns voos foram feitos”, afirma o agora Tenente General Alfredo da Cruz, “e, felizmente, as coisas não descambaram para uma guerra civil. Nesta altura, como sabe, as coisas estiveram muito negras, especialmente em Lisboa. E eu não posso esquecer que morreu lá um grande amigo – o Tenente Coimbra – nas escaramuças entre a Polícia Militar e o Regimento de Comandos. Ele, infelizmente, faleceu… Pronto, esta tensão durou uma semana e, a partir daí, as coisas estabilizaram”.

O Tenente General Alfredo da Cruz vai proferir na próxima sexta-feira uma comunicação em Ponta Delgada intitulada ‘A Força Aérea na Guerra do Ultramar. Experiência de um piloto de combate”.
Trata-se de uma comunicação que se insere num ciclo de conferências-debate organizado pelo Centro de Estudos Gaspar Frutuoso que tem uma comissão organizadora coordenada pelo professor Carlos Cordeiro e é ainda constituída por Ferreira de Almeida, José Salgado Martins e Luciano Garcia Lopes.
Alfredo da Cruz é de opinião que Portugal levou tempo demais a reconhecer o empenho e denodo do soldado português em África. E que, só a partir do discurso “notável” de António Barreto proferido no 10 de Junho (Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades) do ano passado, é que o país começou a olhar com outros olhos para o milhão de jovens portugueses que combateu no Ultramar.
Neste discurso, António Barreto referiu que os soldados vão para a guerra por quatro razões: Por dever, por convicção, por serem solidários, e por obrigação.
“Nunca tive dúvidas”, afirma o agora Tenente General da Força Aérea, “que eu fiz a guerra logicamente por dever, por espírito solidário e por obrigatoriedade. Nunca por convicção. Vi muito poucos que estavam lá por convicção…”
“E eu também não tenho dúvidas”, continua Alfredo da Cruz, “que uma das coisas que me manteve sempre vivo e activo durante os dois anos que passei lá fora, foi o espírito solidário, o salvar vidas, o estar presente…”
“Durante os dois anos em que estive em África, não posso precisar, devo ter feito mais de uma centena de evacuações. Eu e os outros pilotos salvámos a vida a muita gente de entre os muitos milhares de jovens soldados do exército português, muitos deles oriundos dos Açores (Alguns, inclusive, eram do meu curso e voaram comigo). E isso dava-nos, ao fim do dia, outra forma de estar porque sabíamos que estávamos a fazer algo de útil…”
“Então, já não tínhamos dúvidas que a situação portuguesa em África nunca seria resolvida pela via militar. Estávamos, sim, a dar condições ao poder político para resolver a situação”.

Viver debaixo do chão
a combater a guerrilha

Na comunicação que vai proferir sexta-feira em Ponta Delgada, o tenente General Alfredo da Cruz vai falar de algumas das suas operações enquanto piloto de combate nas acções de contra guerrilha.
“Nós, pilotos de helicóptero, fomos – quase de certeza – quem melhor se apercebeu do que é que foi a intensidade da guerra. Isto porque, ao voarmos e estarmos ligados às forças terrestres, íamos a todos os lados. Eu vi coisas impressionantes que me doiam profundamente a alma: ver irmãos meus a viverem em locais sem o mínimo de condições humanas, a viverem debaixo do chão…”
“Eu conto-lhe uma história. São histórias verdadeiras. Eu tive um comandante de esquadra em África que é um homem que muito prezo e, felizmente, somos hoje grandes amigos. Ele chegou mais tarde junto a nós, quando eu já estou com um ano e pouco de comissão de serviço. Ele andava à minha asa, embora fosse meu comandante. Na altura, ele não conhecia a realidade, tinha pouca experiência nos helicópteros. E embora eu fosse seu subordinado, em termos de Força Aérea, o que conta são as qualificações. Na altura era mais qualificado e, por isso, ele voava à minha asa. E um dia fomos fazer uma operação algures no Niassa com uma companhia do exército. Agora não posso precisar se fomos buscar a companhia que estava numa operação para transportá-la para o aquartelamento. Aterrámos e fomos beber uma cerveja quando, de repente, a imagem que tenho é a do meu comandante de esquadra estar de frente com outro indivíduo do exército que não tinha galões. Até porque nós em África ninguém trazia nada. E o indivíduo do exército perguntava ao meu capitão: ‘Óh Zé, não me estás a conhecer?’ E o meu comandante de companhia reagia: “A sua cara não me é estranha”.
“Hei pá, sou o Manuel das Perdizes. Andamos na mesma camarata”, voltava a insistir o homem do exército. E, perante esta afirmação, “eu nunca mais posso esquecer a cara do meu comandante de esquadra a comentar: ‘Óh Manuel, não é possível. Não és tu…’.”
“O facto é que eles iam para o mato e, ao fim de uma semana, ficavam irreconhecíveis. Faziam escavações, tudo muito difícil. E o meu comandante de esquadra concluía virado para mim: ‘Óh Cruz, como é que é possível?’...”
“E eu lembro-me de ter respondido: Chefe, esta é a dura realidade…”

Reconhecer a estoicidade
do soldado em África

O actual Comandante Operacional dos Açores tem uma opinião crítica da forma como, durante anos, caiu no esquecimento a entrega dos militares portugueses em África. “Os nossos soldados, e isso é agora reconhecido, foram de uma estoicidade extraordinária”.
Aliás, prossegue, “tenho uma opinião sobre todo o processo de reconhecimento e de dignificação deste milhão de jovens que passou pela guerra em África, entre os quais eu me incluo”.
“…Naquela fase posterior ao 25 de Abril, não havia nem o tempo nem as condições nem a vontade para se analisar o que tinha sido a guerra e dignificar toda aquela geração que representa um milhão de jovens de todas as regiões. Aqui dos Açores foram milhares de açorianos para África….”
A partir dos anos 90, “começou a haver tempo e as condições, ainda de forma periclitante, para o fazer e reconheceu-se os deficientes das Forças Armadas através da criação da Associação de Deficientes das Forças Armadas”.
“Mas, só efectivamente em pleno século XXI é que houve, finalmente, a vontade de dignificar a Pátria, principalmente a Pátria. E não posso esquecer que, pela primeira vez, na comemoração do 10 de Junho do ano passado, há um desfile de veteranos e antigos combatentes que nunca tinha acontecido”.
E, mais recentemente, nas comemorações dos 50 anos do início da guerra em África, o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Aníbal Cavaco Silva, fez um discurso “extremamente importante” proferido num local “sagrado para todos nós que combatemos em África”, - que é o Monumento aos Combatentes em África. Então, “a Pátria e o Povo português na presença do senhor presidente da República reconhecem este milhão de jovens que combateu em África. Isto é extremamente importante”, completa Alfredo da Cruz.
E o Tenente General conclui: “Penso que, efectivamente, está a começar-se – 36 anos passados – a fazer justiça. Há um sector minoritário da sociedade portuguesa que ainda não compreendeu – e que eu normalmente chamo esquerda intelectual – que há que diferenciar muito claramente quem ordenou a guerra e a mandou fazer de quem a executou. São duas coisas completamente diferentes. E quem a executou por dever e obrigatoriedade foi todo aquele milhão de jovens que passou pela guerra de África, muitos deles (soldados que vinham dos Açores, de Trás-os-Montes, das Beiras…), nem tinham a verdadeira noção da guerra”.

Origem do Voo:

Correio dos Açores

Autor: João Paz