sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Voo 2535 OS NOSSOS HISTÓRICOS AVIADORES.NUNO ALMEIDA.

DIAS DE CORAGEM E AMIZADE

Nuno Tiago Pinto ouviu 50 testemunhos que fazem
parte deste livro e descreve os momentos maisdramáticos das suas experiências nos cenáriosda guerra colonial – Angola, Guiné e Moçambique.Relatos impressionantes, na primeira pessoa, decoragem e de amizade, de medo, heroísmo,desespero, de soldados, médicos, enfermeiras quecombateram em nome da pátria.

Hoje vamos dar aqui inicio à transcrição integral dos acontecimentos vividos pelos companheiros da Força Aérea na Guiné publicados nesta obra.






Nuno Almeida
Ecp.MMA “Canibais”
Lisboa

Foi ferido a evacuar dois soldados do exército e operado cinco vezes antes de regressar a Portugal. Os médicos davam-lhe três semanas de vida e deixaram-no vir morrer junto da família. Pesava 33kg: “A minha mãe não me reconheceu”

Estava no hangar da base de Bissalanca a fazer trabalhos de manutenção quando o tenente chegou ao pé de mim e disse-me:

-“Ó Poeta (todos me tratavam assim) você fazer esta evacuação.
É uma coisa simples e assim pode treinar saltar do helicóptero e meter o ferido lá dentro.”
Estava há uns 15 dias na Guiné, desde 27 de Janeiro de 1972.Entrei com enfermeira Giselda do Alouette e descola-mos.
Forma menos de 15 minutos de voo. Íamos buscar um fuzileiro.
Assim que o metemos lá dentro ela começou num trabalho diabólico a meter-lhe soro e a dar injecções. O gajo tinha o ventre todo aberto e as tripas de fora. Nunca mais me esqueci. Tinha bigode e trazia um fio de ouro com uma medalha esmaltada da mulher e da filha. Começou a olhar para a fotografia e a dizer “Nunca mais vos vejo, nunca mais vos vejo”.Na minha inexperiência, baixei-me, bati-lhe no peito e disse-lhe que dai a 10 minutos estava no hospital e ia-se safar. Conforme faço isso ele meteu a medalha à boca, trincou-a, agarrou-me o pulso com as duas mãos, revirou os olhos e morreu. Foi o primeiro morto que vi. Fiquei sem reacção. Estive ali 10 minutos a chorar completamente perdido, com o tipo agarrado ao meu braço. Nós vínhamos em bancos virados para trás, onde cabiam duas macas, uma em baixo outra em cima. Só no hospital é que os maqueiros conseguiram abrir-lhe as mãos. Quando cheguei à base sai do helicóptero completamente louco e fui directo ao tenente. Chamei-lhe todos os nomes possíveis e disse-lhe que nunca mais fazia evacuações. Ele disse-me: “Tome banho, vá para Bissau e volte quando quiser.”No outro dia apresentei-me ao serviço e fiquei no hangar. Passados uns dias já não aguentava estar ali com aquele calor e a pensar na família.
Comecei a oferecer-me como voluntário para tudo que houvesse de evacuações. Passava a vida naquilo. Só queria voar para esquecer. Nunca mais tive uma reacção como a do primeiro voo.
Tornou-se uma rotina. Fui buscar gajos destroçados a esvair-se em sangue. Metíamo-los lá atrás e era como se não existissem. Os gajos gritavam e não era nada connosco. Eu era mecânico e o outro piloto. Não podíamos fazer nada. Virava-me para a frente e pronto.
Algumas evacuações foram terríveis. Saia do helicóptero com a maca à procura do ferido e estavam gajos do exército a chorar, completamente desesperados. Perguntava: -“Onde está o gajo? Onde está o gajo?” Eles só apontavam e não diziam nada.”Estão a gozar comigo? Depressa.”E eles a chorar e apontar. Só quando olhei para esse sítio e deixei de procurar um corpo é que vi uma bota. Fui ao helicóptero deixar a maca, trouxe um saco e meti a bota com o pé lá dentro. O rapaz tinha pisado uma mina e ficou a “pintar as árvores. Houve outra vez que foi só um braço.
Um gajo passava por estas situações, mas quando chegava ao hospital acabava tudo. Limpávamos o helicóptero, mudávamos o óleo e íamos para Bissau comer umas ostras ou ao cinema. Ficava tudo para trás. Falávamos das miúdas, líamos aerogramas nas camaratas, fazíamos palhaçadas e brincadeiras. Uma vez o tenente disse-nos que ainda não tinha precisado de encher os pneus do carro que tinha trazido de Portugal. Nessa noite fomos lá com uns fósforos e abrimos a pipeta do pneu para respirar o ar da metrópole: “Ahhh que bom.”
Ao fim de 10 meses, fui ferido. Nesse dia vinha de férias para passar cá os anos, o Natal e o Ano Novo. Era 25 de Novembro de 1972. Levantei-me mais tarde, preparei-me para embarcar ás16 horas e fui despedir-me da malta ao hangar. De repente apareceu um jige de alerta com um piloto. O gajo que estava de serviço foi para o helicóptero, preparou tudo, e quando o motor começou a trabalhar fiquei que ia ficar um mês e tal sem andar num bicho daqueles. Começou a dar-me uma coisa. desatei a correr, o piloto parou, abri a porta e pedi-lhe:”Deixa-me ir a mim” Ele estava com 20 meses de Guiné e veio logo para fora.
Quinze minutos depois saltei com a maca para ir buscar os feridos à mata de Choquemone, ao pé de Bula. Era pessoal do exército. Piriquitos, só com dois meses de Guiné. Tiveram dois feridos, estenderam os oleados cor de laranja, pediram a evacuação e ficaram sossegados, sem fazer o perímetro de protecção. Os turras ficaram ali à espera. Quando sai, ouvi uma morteirada cair. Olhei para o piloto e ele fez-me sinal de que não sabia o que era. Ia a caminhar para os feridos e os gajos levantaram-se à minha frente a disparar. Virei-me para ir para trás e caí logo em cima da maca: levei com uma bala de cabeça cortada na artéria femural da perna esquerda. Entrou mas não saiu. Não sei se desmaiei logo. Tenho Flashes. Só ouvia uma voz:”Não grites para eles não saberem que estamos aqui.” Era o furriel que me salvou a vida. Ficámos nós e os dois feridos. Os outros começaram a fugir e foram abatidos. Morreram 35 gajos. Ele fez-me um torniquete e, como tinha um buraco a deitar golfadas de sangue, agarrou nos guardanapos de papel das rações de combate, fez bolas e empurrou-as lá para dentro com o dedo. Meteu tanto papel que aquilo coagulou, secou e deixei de ter hemorragia.
O piloto ao ver-me cair levantou voo. O helicóptero levou com 117 balas e só aguentou sete minutos no ar. Antes, comunicou para a base que a tropa estava a ser dizimada e que eu tinha morrido. Um rapaz da Força Aérea embarcou para Lisboa com essa informação e, quando aterrou no Figo Maduro, disse à minha família que eu tinha ido fazer uma evacuação antes do embarque e tinha falecido.
Entretanto comandante da base enviou quatro Fiats bombardear a zona. Eu estava lá em baixo e comecei aos gritos e a esbracejar. Um dos pilotos viu-me e mandou parar o ataque. Mas já tinha largado umas bombas e cegaram-me da vista esquerda.
Estive uma hora e meia no mato. Foram buscar-me e devo ter desmaiado no voo porque só acordei depois da operação. Mais tarde soube que, quando cheguei ao hospital de Bissau, o médico pensou que não tinha nada de especial porque não estava a perder sangue. Quando fez a incisão para tirar a bala é que viu que não tinha artéria femural. Aquilo não podia ser. Começou a cortar mais para cima até encontrar uma bola de papel coagulada.
Ligou logo ao comandante porque precisava de autorização para me amputar a perna. Não havia hipótese de preencher 14 cm de artéria. A alternativa era a morte. Tive sorte porque o comandante perguntou-lhe:
“Vai cortar a perna porquê?”
“Não tenho tempo nem sangue para o salvar.”
“O tempo você arranja e o sangue arranjo eu. Se você cortar a perna ao gajo nunca mais é médico na puta da vida:”
Através dos altifalantes da base comunicou o que tinha acontecido e que era preciso sague ORh+.Os meus amigos contaram-me que era só malta de carro, bicicleta e autocarro a caminho do hospital. O médico era o Dr.Manuel Rodrigues Gomes,um grande cirurgião que estava nos Estados Unidos e que foi para a Guiné a pedido do António de Spinola. Tirou-me veia de uma perna para meter na outra. E lá consegui safar-me. Mas como os excertos não pegavam, tive de ser operado mais vezes. À quarta cirurgia ele meteu-me uma artéria de cartão plastificado, o que na época era uma experiência. Durou uma serie de anos. Depois inundaram-me de antibióticos para não rejeitar o cartão. Tomava 39 cápsulas e 9 injecções por dia. Aquilo foi tão forte que me destruíram o fígado e não consegui comer durante 35 dias. Tudo o que entrava, saia. Pesava 63 Kg e emagreci 30Kg.
Ao fim desses dias o médico disse-me que tinha falado com o comandante e que a Força Aérea ia pagar-me a viagem porque tinha no máximo 3 semanas de vida e assim ia morrer ao pé da minha família.
Cheguei a Lisboa a 25 de Janeiro de 1973,ás 21h00.No outro dia levaram-me para uma enfermaria onde era o único do ultramar. Estava com uma barba de dois meses e as unhas enormes. Nunca me eram banho. Ainda tinha sangue nas pernas e cheirava mal como tudo. À hora da visita vi a minha mãe aproximar-se e fiquei com uma alegria enorme. Só que ela chegou ao pé de mim com um ar espantado e disse-me;”Desculpe, disseram-me que o meu filho estava na cama 11,mas deve ser engano.”Não me reconheceu. Virou-se para se ir embora e eu lá balbuciei:”Mãe sou eu, sou o Zé.” Ela olhou para mim e virou as costas. Quando chegou ao pé do meu pai ouvi-a dizer-lhe:”Não vás ali que está lá um maluquinho a dizer que é o nosso filho mas não é.”O meu pai é que viu que era eu.
Cheguei cá e mudei completamente. Tiram-me os antibióticos e comecei a comer e a engordar. Depois foi a recuperação. Ao fim de seis meses imobilizado tinha os tendões a retrair: o pé estava a virar para trás e o joelho também. Fugi do hospital e depois de me enviarem para o anexo de Campolide marcaram-me a operação para me amputar. Claro que não apareci. Foram-me buscar a casa debaixo de prisão e levaram-me ao brigadeiro Menezes, o director dos serviços de saúde da Força Aérea. Era uma besta:”Não autorizaste que te amputassem? Andas a gozar? Ou autorizas que te cortem a perna ou expulso-te da tropa e ficas aleijado para toda a vida sem direito a reforma ou tratamento.”Passei-me. Meti a canadiana na secretária e varri tudo o que lá havia. Depois encostei-lhe a borracha ao nariz e disse-lhe:”Seu filho da puta, se fosse seu filho falava dessa maneira?”Deu ordem para me expulsar. O meu pai viu aquilo, começou a chorar e eu disse-lhe que íamos resolver aquilo: “Vamos a casa do Spinola.”
Bati à porta, apareceu a empregada que disse que só estava a esposa. Ela mandou-me entrar, perguntou-me o que se passava e eu, naquele estado alterado, contei-lhe tudo: que tinha 22 anos e que me queriam cortar a perna. Achava que não era preciso.
Nem pedia para ir para país nenhum, só queria ir para Carcavelos, onde havia um hospital com uma equipa de cirurgiões capaz de resolver o assunto. Pediu-me os dados e disse-me que ficasse descansado que ela ia tentar resolver o assunto.
Quatro dias depois o meu pai recebeu um telefonema para eu me apresentar ao brigadeiro Menezes. Entrei numa pilha de nervos. Achava que ele me ia expulsar da tropa. Mas agarrou numa guia de marcha e atirou-ma:”Toma lá esta merda. Vamos gastar uma data de dinheiro contigo para ver se deixas de me dar cabo do juízo.” À porta estava uma ambulância para me levar a Carcavelos. Fui internado em Novembro de 1973 e operado. Ao fim de 16 dias estava a andar. Mas ainda hoje não sei se foi graças ao general ou à mulher.