sábado, 26 de novembro de 2011

Voo 2595 OS NOSSOS HISTÓRICOS AVIADORES, MIGUEL PESSOA


DIAS DE CORAGEM E de AMIZADE



Nuno Tiago Pinto ouviu 50 testemunhos que fazem parte deste livro e descreve os momentos mais dramáticos das suas experiências nos cenários da guerra colonial – Angola, Guiné e Moçambique. Relatos impressionantes, na primeira pessoa, de coragem e de amizade, de medo, heroísmo, desespero, de soldados, médicos, enfermeiras que combateram em nome da pátria.






Miguel Pessoa
Cor.Pilav
Lisboa








No início de 1973 ainda não havia grandes limitações à actuação da Força Aérea na Guiné. No entanto, para evitar os RPG voávamos a um mínimo de 1500 pés (500 metros) de altitude. E para não sermos atingidos pelas anti-aéreas, junto à fronteira, não podíamos circular demasiado alto.

Legenda; Míssil terra-Ar Strella II

Mas em Março desse ano apareceram os mísseis terra-ar Strela.(*) Eu fui o primeiro a ser alvejado por um e a ser abatido por outro. No dia 20 de Março saí com o comandante do Grupo operacional para uma missão junto à fronteira Norte. Estávamos a fazer o reconhecimento para um bombardeamento quando sentimos algo a passar entre os nossos dois aviões. O míssil passou tão perto do chefe da formação que ele sentiu a onda de choque e pensou que o Fiat tinha sido danificado. Ainda me coloquei debaixo do avião dele para ver se algo tinha sido atingido, mas estava tudo bem e regressamos à base.
Cinco dias depois, fui abatido. Ao contrário do que acontecia normalmente, nesse dia descolei sozinho. Era domingo e devíamos ir dar apoio de fogo ao aquartelamento de Guileje Para termos mais tempo sobre o alvo decidimos que eu ia primeiro para identificar a ameaça e transmitir qual seria o armamento mais adequado para a missão: bombas ou rockets.
Depois o outro Fiat sairia de Bissalanca. Já no local, fui atingido por trás. Não vi nada. Suponho que me acertaram na fuselagem do lado esquerdo. Senti o impacto e a perda de potência imediata do avião. Ainda o consegui manobrar, à procura da zona do nosso aquartelamento, mas mentalizado de que aquilo ia acabar mal. Só que, entretanto, perdi o resto dos comandos. O avião afundou-se repentinamente e eu ejectei-me. Deviam ser umas 13h00.
Aqueles segundos pereceram-me uma eternidade. Para nos ejectarmos tínhamos de puxar um aro que ficava por cima da cadeira e que accionava a carga explosiva que a fazia sair. A abertura é automática. O sistema não demora mais de 1/3 de segundo a funcionar. Mas tive a sensação de que aquilo estava a demorar demasiado tempo e ainda tentei puxar o sistema alternativo, uma argola que tínhamos colocada na cadeira, entre as pernas. Quando ia levar a mão lá abaixo senti um esticão nas costas. A ejecção apanhou-me já com o avião em trajectória descendente. Quando entrei pelas árvores ainda nem tinha o pára-quedas bem aberto. Salvou-me a travagem com os ramos, mas mesmo assim colidi com o solo com demasiada velocidade e perdi a consciência. Terei acordado no mato ao fim de meia hora.
Pouco depois comecei a ouvir os aviões à minha procura. Levava comigo um Kit de sobrevivência com uma bússola e nove
very-lights.(**) A minha preocupação foi tentar deslocar-me na direcção do aquartelamento e encontrar um sítio onde pudesse disparar os sinalizadores. Ali a mata era tão cerrada que isso era impossível. O problema era que tinha a perna esquerda partida, no perónio, perto do pé. O médico depois disse-me que a fractura tinha sido provocada por um excesso de entorse ao cair no solo. Depois comecei a deixar um «rasto de macaco» porque ia de rastos e só partia a vegetação numa altura baixa.
Finalmente consegui encontrar um sítio de onde podia disparar os
very-ligths, embora um bocado enviesados. Encostei-me a uma árvore virado para essa zona menos cerrada. Como não conseguia ver de que lado é que os aviões se aproximavam tive de presumir, pelo som, pois os pilotos tinham de ver o disparo de frente. Com isto gastei alguns que ninguém viu. As horas foram passando e só lá para as 16h00 é que um avião viu a minha sinalização. Passou lá perto e conseguiu localizar o pára-quedas. Foi então que na Base começaram a preparar a recuperação.
Sabia que ia ali ficar a noite toda. Estava preocupado porque aquela zona era conhecida pelo “corredor de Guileje”, a zona por onde o PAIGC passava o material. Não tinha armas e só ansiava por não aparecer ninguém. Nem me lembro de ter frio. Sei que a certa altura a perna começou a latejar e até pensei que uma cobra se tinha encostado a mim. Para descansar e me tornar menos notado decidi deitar-me e encostar a cabeça ao solo. Foi a pior coisa que podia ter feito: a partir daí comecei a ouvir ampliados todos os barulhos à minha volta. A queda das folhas pareciam pessoas a aproximar-se. E nessas situações uma pessoa pensa sempre no pior. Já conhecia a história do António Lobato e achei que podia ter o futuro tremido. Se me encontrassem – e não me liquidassem – iriam certamente tentar forçar-me a fazer umas declarações bombásticas contra o regime.
Na madrugada do dia seguinte começaram logo as operações de resgate. Além dos aviões para apoio à recuperação, colocaram no terreno um bi-grupo da Companhia de Caçadores Pára-quedistas 123,para além do grupo de operações especiais do Marcelino da Mata. Depois de gastar os últimos
very-lights, decidi despir a parte de cima do fato de voo, tirar a camisola interior branca e voltar a vesti-la por cima do fato para me verem melhor do ar. Achei que ia ser salvo directamente por um Alouette III. Mas com o passar das horas e a aparente ausência de socorro comecei a ficar preocupado.

Legenda; O Ten.Pilav.Miguel Pessoa,depois de encontrado pelo grupo de Marcelino da Mata,está a ser transportado para o helicóptero com destino ao hospital de Bissau

A certa altura comecei a ver movimento no meio da folhagem. Eram africanos. Usavam Kalashnikovs (***)e fardas estrangeiras. Pensei que fossem do PAIGC. Só que começaram a chamar pelo meu nome. Ainda na dúvida pedi-lhes que me deixassem em paz. Pensei que até tinha sido delicado – mais tarde contaram-me que até fui um bocado ordinário. O chefe deles aproximou-se. Disse-me que era o Marcelino da Mata. Só que eu não o conhecia. Sabia apenas que costumava levar cantis com Fanta e Coca-cola. Pedi-lhe para beber e confirmei que ele era quem dizia.
Entretanto o pessoal do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas chegou ao pé de nós. Levaram-me para o helicóptero, mas no caminho, os homens do Marcelino da Mata ainda iam a insultar os tipos do PAIGC. Sugeri-lhes que primeiro me pusessem a salvo e que depois se entendessem com os outros...

Legenda; Aqui, já deitado na maca em que foi transportado para o helicóptero, segurando a garrafa de champanhe que os militares do aquartelamento lhe ofereceram.

Quando cheguei ao quartel de Guileje o pessoal do aquartelamento ofereceu-me uma garrafa de champanhe que mantive preciosamente comigo. Estava lá a enfermeira pára-quedista Giselda. Já nos conhecíamos da Base. Mas eu nunca tinha feito evacuações com ela. Nem viria a fazer.
Foi ela quem me acompanhou até ao hospital, onde me engessaram a perna. Meses depois andei eu à procura dela quando o DO-27 onde ela ia caiu perto da ilha de Como.
Pouco tempo depois fui evacuado para Portugal. Estive cá quatro meses e, já recuperado, voltei mais um ano para cumprir o resto da comissão. Ainda me falaram na hipótese de ir para Moçambique, mas optei por regressar à Guiné. A Giselda continuava lá. A maior parte das enfermeiras pára-quedistas ficavam sete ou oito meses. Ela esteve 26 meses seguidos. Todos estes acontecimentos criaram laços que se foram fortalecendo. E que fizeram com que ela me acompanhasse nos momentos mais importantes da minha vida. Ela veio embora em Abril 74. Eu regressei a 18 de Agosto. Nós casámos em Outubro. Foi rápido. Já estava tudo encaminhado.

(*) Projéctil guiado, dotado de autopropulsão
(**) Foguete luminoso e colorido disparado de uma pistola e utilizado como sinal
(***) Espingarda de assalto de calibre 7,62 x 39 mm