quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Voo 2693 OS ANTECEDENTES.








Gabriel Cavaleiro
1ºSargº.Pil.Av.
Olhão




A minha Força Aérea - Os Antecedentes


Brasão de Lourenço Marques


1961. Em Lourenço Marques.


No dia 30 de Janeiro, morava eu na Pensão Vouga, na Av. Pêro de Alenquer, nº 8, fiz a minha participação obrigatória para ser inscrito no recenseamento militar desse ano, na Câmara Municipal da Capital de Moçambique.
E a 18 de Agosto desse mesmo ano recenseei-me mesmo. No dia 14 de Setembro fui presente à junta de recenseamento, presidida pelo Ten. Cor. Hintze Ribeiro.
Apurado para todo o serviço militar, com Cédula de Recenseamento Militar passada e tudo.
Só me via a marchar, esquerdo, direito, esquerda volver e eu sem vontade nenhuma de ser somente um número. E as noites na caserna? Selvagem como sempre fui, como é que ia aguentar? Passei meses de “tormento militar” antes de o ser.
Uma noite, depois de jantar na Pastelaria da Cooperativa dos Criadores de Gado o iogurte e torrada do costume (como é que eu podia ser gordo?) fui a pé até ao Diário de Lourenço Marques onde li, na vitrina onde o expunham, o jornal do dia.
Li-o de uma ponta a outra. Sendo que a outra ponta, onde já não havia mais jornal, era um quadradinho a comunicar que a Força Aérea estava a recrutar Pilotos.
Escusado será dizer o que se passou nessa noite.
Contactada a Força Aérea, preenchidos os papéis, deram-me uns folhetos mágicos onde pude ler que ia fazer o curso na “Granja do Marquês”, em Sintra.
- Granja do Marquês!
Granja, não sabia bem o que era... Na minha terra, que eu soubesse, só havia machambas.
Mas aquilo soava-me a prados muito verdes, uma grande mansão centenária, grandes salões, tudo muito limpo, vaquinhas a pastar e aviões pelo meio a elevarem-se graciosamente em direcção ao céu, muito azul.
- Que maravilha! Que maravilha!
- É mesmo isto que eu quero!
Passei nos exames médicos e lá fui, finalmente livre da caserna da tropa, para a Metrópole a requintar na minha imaginação a Granja do Marquês.
Meteram-me num avião DC 6 e no dia seguinte, um dia gelado de Abril, aterro naquele “enorme” Aeroporto em Lisboa.



Aeroporto da Portela anos 60

Aterrei cheio de orgulho da minha condição de Piloto Militar que ia ser e chego finalmente à Granja do Marquês, a Base Aérea de Sintra.




As tais vaquinhas deviam estar nos estábulos, àquela hora da minha chegada tão ansiada. Não vi nenhuma. Nem a tal mansão.
Aquilo tinha muito pouco aspecto de ser uma exploração agrícola…





A Base de Sintra, hoje

Mas para compensar deram-me logo um passaporte.
- Inacreditável!
Ia ter um passaporte para voar para todo o lado!
Mas não era bem isso…
O passaporte era um documento oficial em papel amarelado que me habilitava a ser recambiado, por via férrea, em 3ª classe, para a Base Aérea de S. Jacinto. Em Aveiro.
Não faz mal, aceitei ainda e sempre, entusiasmado.
E lá nos meteram, aos 69 Alunos Pilotos, num comboio correio, em 3ª classe, em Sta Apolónia, a “voar” toda a noite e a “aterrar” em todas as paragens e apeadeiros que o maquinista conseguia inventar, até Aveiro. Se calhar só não parou onde não teve mesmo vontade.
Chegámos, felizmente, já de manhã.




Estação da CP, de Aveiro

Digo felizmente porque podíamos não ter chegado todos.
O que se passou naquela viagem, toda a noite, com aqueles quase 70 manfios, tinha dado para chamar a Polícia várias vezes e meter tudo dentro.
Entre outras coisas realojámos alguns passageiros que não tiveram outra coisa a fazer senão mudar de carruagem para o maralhal poder estar todo junto e assim dar largas, afinal, àquela grande libertação da idade da inocência que tudo aquilo realmente representava.
Deixávamos para trás, definitivamente, em especial aqueles que tinham embarcado no Ultramar e não sabiam quando poderiam voltar a casa, a autoridade e protecção do Pai, os carinhos da Mãe, a boa comida, as miúdas, os grandes amigos de toda a vida.
O nosso mundo nunca mais ia ser o mesmo. Tínhamos consciência de estar a viver dentro da mudança.
E íamos a caminho da Guerra…



A Ria de Aveiro

Chegámos, em lanchas da Marinha de Guerra, à muito simpática Base Aérea de S. Jacinto, numa língua de areia à entrada da Ria, frente a Aveiro.



Logo da Base Aérea Nº 7 em S. Jacinto, Aveiro

Afinal… o imaginário do quartel da tropa terrestre não era assim tão diferente da “fotografia” exposta. Só tinha a mais haver mar a toda a volta, uma praia imensa de água abaixo de gelada, aviões que eu já conhecia do Aeroclube e uma enorme alegria em ir fazer o que se gostava.
E já se começavam a fazer grandes amizades que só ainda não acabaram porque ainda estamos vivos



Vista geral da Base nos dias de hoje

Aqui começámos aquilo que nos levaria a ser o Curso mais conhecido da Força Aérea: embora quiséssemos ser conhecidos por “Ícaros”, ficámos conhecidos como sendo os ” VCCs”, que queria dizer, e todo o Estado Maior sabia isso, “Velhos Como o C…” Né?




O nosso Logo

E porquê? Na Força Aérea os cursos demoravam cerca de um ano.
Fomos brevetados ao fim de mais de dois anos, daí o nome, bem aplicado, como se vê.
E isto deveu-se às contingências do momento: a grande aglomeração de Alunos Pilotos na Base Aérea de Sintra, passo seguinte na nossa instrução com vista à guerra no Ultramar, que fez com que só tivéssemos lugar uns 8 meses depois do final do nosso curso em S. Jacinto.
Fomos o curso da Força Aérea com mais Pilotos na TAP. Quase todos chegaram a cargos superiores, como Chefes de Divisão, Chefes de Frota, Instrutores de Voo e Simulador, Verificadores, etc.
Uns quantos andaram por guerras alheias, como a do Biafra. Outros optaram por fazer carreira noutras paragens, como a DETA em Moçambique, a Singapura Air Lines, DHL, Air Macau, etc,etc, com grande destaque. Também chegaram a Instrutores e Verificadores, do outro lado do Mundo.
Nenhum VCC desertou.
Dois foram feitos prisioneiros. Um na Nigéria 4 anos e meio.
O outro foi barbaramente assassinado à catanada numa tentativa de fuga, em Angola.
Lamentamos e choramos todos os nossos mortos no Ultramar. E não só.
A velhice não significa, obrigatoriamente, saber. Neste caso,
os VCCs demonstraram que foram “Velhos” antes do tempo e por isso se mantiveram sábios no que sabiam fazer, mas jovens…
Os VCCs juntam-se todos os anos num almoço de confraternização. Alguns bem acompanhados… das respectivas VCCs.
Um abraço a todos os VCCs.
- Estamos todos VCCs...
Gabriel Cavaleiro

 VB: De facto a nossa FAP deixou-nos grandes recordações.
O Cavaleiro traz-nos aqui histórias vividas na primeira pessoa que nos deixam emocionados e nos obriga a repetir a sua leitura.
Muitas mais ainda têm para nos contar, como já o fez no seu espaço “ Rio dos bons Sinais”e que gentilmente nos facultou a sua reprodução.
De facto estes nossos antigos aviadores viveram tempos, passaram situações, que hoje para nós vindouros nos deixam agarrados à sua leitura, muitas vezes idealizando a realidade, dificilmente concretizado.
São estes companheiros como tu que, sem qualquer grão de superioridade perante quem quer que seja, mas utilizando a simplicidade para com quem não esquecem de um longo passado, fazem a história da FAP.
Pena é que outros mais recentes e que frequentaram a mesma escola não tenham tido o mesmo aproveitamento.