Maria Arminda
Cap.Enfª.Paraqª.
Setubal
Dias após completar 80 anos, recebi o
convite para fazer este retrato escrito da minha vida. Chegada a esta idade,
pensei não ter estes trabalhos; sobretudo, acho-me muito pequenina entre as
figuras de Faces de Eva. A minha filha influenciou-me a partilhar as minhas
vivências e a organizar as notas que escrevo desde que participei no livro Nós,
Enfermeiras Paraquedistas, publicado em 2014, que reuniu testemunhos de várias
colegas na Guerra do Ultramar. Aceite o desafio, fica este relato lembrando
pessoas que comigo foram fazendo esta “viagem”; muitas delas já desaparecidas
(tragicamente algumas), por ser essa a lei inexorável da vida.
Nasci em 1937, em Setúbal, a mais nova
de seis irmãos, mas apenas três sobreviveram para me acompanhar pela vida; o
João (nascido vinte anos antes de mim), a Ivone e a Gracinda. Não me recordo da
minha mãe, que faleceu com febre tifoide, tinha eu dois anos e meio. Nessa
altura, a tia Maria do Rosário, sua irmã, veio para nossa casa orientar as
nossas vidas, acabando por se casar com o meu pai e tornando-se uma verdadeira
mãe. Faleceu quando eu tinha oito anos. Depois, tive várias mães, a minha irmã
Gracinda, a minha cunhada Laura, vizinhas e empregadas. O meu pai trabalhava na
Mobil Oil, fazia a distribuição de combustíveis no Alentejo, permanecendo em
casa apenas no fim de semana.
Habitávamos no Bonfim, zona verdejante
da cidade, com palmeiras, plátanos, mimosas e lodeiros, rodeada de quintas com
abundantes pomares. Com os vizinhos formávamos uma grande família. Nas noites
de verão, os adultos ficavam à porta a conversar, e nós a apanhar pirilampos
que guardávamos em caixas de fósforos. Passava os dias a brincar livremente no
campo, à macaca, pião, eixo, trinta e um, berlinde, e à bola, onde, à vez, era
jogadora e massagista, uma “maria-rapaz”, alegre e traquina. Um dia, um dos
miúdos mandou-me uma coleção de bandeirinhas dos países, uma forma de pedir
namoro. Era o Álvaro, com quem vim a casar.
A minha infância foi vivida no decurso
da II Guerra. Lembro-me de a minha irmã colar tiras de papel nas janelas e
dizer que tínhamos de apagar a luz (dos candeeiros a petróleo) por causa dos
aviões. Sentia medo e o meu pai sentava-me no colo, aconchegava-me no seu
capote alentejano, contava ser um sobrevivente da outra guerra, para me afastar
o receio. Quando a guerra terminou, ouvimos o anúncio na rádio e, com os outros
garotos, corri com alegria a espalhar a boa nova.
Não havia infantários e, aos três anos,
fiquei ao cuidado de uma mestra, com quem aprendi a ler e fazer contas. Tive
uma boa instrução; quando ingressei na escola oficial fui diretamente para a
segunda classe, e só não fiquei na terceira por ser demasiado jovem. Concluí a
escolaridade obrigatória aos nove anos com distinção e o meu pai decidiu que eu
não continuaria os estudos. Achava-se próximo da reforma e planeou voltar à sua
aldeia para tratar das terras. Estava-me reservado acompanhá-lo, pelo que
fiquei dedicada às tarefas domésticas.
Em outubro de 1951, o meu pai foi
internado no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, para ser operado a um tumor. Fui
para casa da prima Gertrudes,que vivia lá perto, e visitava-o diariamente para
lhe levar melhores refeições. Na véspera de ser operado chovia muito, razão que
levou a minha prima a impedir-me de o visitar, apesar da minha insistência.
Faleceu nesse mesmo dia, 9 de novembro, por erro médico durante a transfusão
prévia à operação. O funeral realizou-se a 14 de novembro, dia do meu 14.º
aniversário. Foi um desgosto enorme que permanece vivo na minha memória, tal a
emoção com que o senti.
Por ser menor de idade, a empresa do meu
pai enviou a nossa casa uma assistente social, a Dra. Irene Aleixo. Por decisão
unânime dos meus irmãos, o valor da pensão a atribuir seria usado para eu
voltar a estudar. O meu irmão foi nomeado tutor e iniciou-se a procura de um
colégio interno. No dia 2 de fevereiro de 1952, Dia da Senhora das Candeias,
entro no colégio da Congregação das Irmãs de São Vicente de Paulo, em Lisboa.
Chorei convulsivamente, depois de o João partir. Fui confortada pelas Irmãs e
apresentada às colegas. Rapidamente fiz amigas.
Fui uma aluna aplicada, apesar de
algumas diabruras que me valeram sérias reprimendas. Concluí, no primeiro ano
letivo, o 1.º e o 2.º anos, para espanto de Irmãs e colegas. Era também uma
desportista nata; jogava ténis, basquetebol, patinava e era a capitã da equipa
de voleibol nos torneios entre escolas. Durante os anos que fiquei no colégio
só vim a casa nas férias de Natal e Páscoa e nas férias grandes. Passava os
fins de semana com as Irmãs, que nos levavam a visitar os pobres dos bairros
próximos do colégio.
Foi necessário gerir bem o dinheiro para
conseguir completar os estudos. A mensalidade, transferida da empresa do meu
pai para as Irmãs, era uma fortuna na época, cerca de mil e duzentos escudos,
fora o material escolar, o valor do enxoval que levei e os custos com as
viagens nas férias. Quando os recursos findaram, as Irmãs conseguiram, através
do Ministério da Assistência[1], um subsídio que me permitiu fazer o curso de
Enfermagem, além do fardamento e uma mensalidade de cem escudos para despesas
pessoais.
A existência do ensino de Enfermagem em
Lisboa deve-se à Irmã Eugénia, senhora brasileira, neta de portugueses, com
grande visão e dinamismo que, juntamente com o Prof. Francisco Gentil,
impulsionou a criação da Escola de Enfermagem de São Vicente de Paulo, que
iniciou atividade a 14 de novembro de 1937 (data do meu nascimento).
Em outubro de 1955, iniciei a primeira
etapa do meu grande sonho, ser enfermeira, algo que vinha dos tempos de
“massagista” e se acentuara nas visitas ao meu pai, no hospital. Fiz o curso
com todo o empenho e tive a grande satisfação de ser uma das melhores alunas.
Apresentei-me, em junho de 1958, na Escola Artur Ravara para prestar provas de
Estado, tendo passado com a classificação de 18 valores (Muito Bom com
distinção).
Optei por trabalhar no Hospital de Santa
Maria, em Lisboa, no Serviço de Patologia Médica. Comecei, em outubro de 1958,
com doentes do sexo feminino e, passado um ano, fui nomeada subchefe,
transitando para o piso destinado a doentes homens. Vivia no Lar das
Enfermeiras do Hospital de Santa Maria, junto à Feira Popular.
Nesse período já namorava o Álvaro, que,
em 1959, partira para a Índia no Serviço Militar Obrigatório. Regressou, em
abril de 1961, no navio Niassa. Este mesmo navio partiria logo depois para
Angola, com um contingente de militares mobilizado à pressa, após os ataques,
um mês antes, por bandos armados com catanas a populações indefesas. No Santa
Maria, o pessoal médico e os universitários andavam apreensivos com rumores de
uma mobilização iminente.
Um dia por esta altura, a enfermeira
Mascarenhas (Maria da Nazaré) perguntou-me: — Ouve lá, Lopes Pereira, eras
capaz de largar tudo, de um dia para o outro, para ir para Angola tratar de
feridos? — Respondi-lhe que sim, pelo que continuou: — Não contes a ninguém
porque é segredo, mas a Madre Superiora da minha escola está a formar um grupo
de onze enfermeiras para esse fim. Até já fizemos exames médicos, mas uma
chumbou, e eu, sabendo que reúnes as condições exigidas, combinei com a Madre
sondar a tua recetividade. — Aceitei de imediato.
A Nazaré, colega do Santa Maria, tinha
conhecimento de um episódio ocorrido no meu segundo ano de curso, em 1957,
quando comentei numa aula um filme passado na II Guerra sobre uma enfermeira da
Força Aérea Inglesa. Notando o meu interesse, o professor referiu uma aluna, de
outra escola de Enfermagem (Irmãs Missionárias de Maria), que tinha brevê de
pilotagem e paraquedismo e deu-me o seu contacto. A aluna em questão era Isabel
de Mello Rilvas (Isabelinha), a quem liguei no próprio dia e que se voluntariou
a visitar o colégio para dar uma palestra sobre as suas experiências aéreas.
Em França, ela conhecera o grupo
Socorristas do Ar, formado por médicas e enfermeiras paraquedistas que
assistiam feridos em locais de difícil acesso, e ambicionou trazer este projeto
para Portugal. Apresentou-o ao tenente-coronel Kaúlza de Arriaga, de quem era
amiga. A ideia foi considerada interessante, mas inviável. Agora, os ataques em
Angola tornavam aqueles planos inadiáveis.
No dia seguinte à conversa com a Nazaré,
fui chamada ao Serviço de Saúde da Força Aérea. Passei os testes médicos e
marcaram testes psicofísicos para 5 de maio. Ao batismo de voo seguiram-se as
duras provas que foram superadas por todas, mas, como fiquei em primeiro,
passei a ocupar o primeiro lugar na formatura, de acordo com a norma militar.
Os acontecimentos sucederam-se em avalanche: a despedida do serviço do Santa
Maria; a comunicação da minha decisão à família; o início do curso intensivo a
6 de junho, que incluía instrução de paraquedismo, e a sua conclusão, a 2 de
agosto, com o inesquecível primeiro salto.
A cerimónia das finalistas, a 8 de
agosto, em que recebemos o brevê e a boina verde (símbolos do orgulho dos paraquedistas),
foi noticiada pela imprensa escrita, rádio e televisão, que deram a conhecer
“as seis Marias”; éramos as primeiras mulheres nas Forças Armadas Portuguesas.
Ainda nesse mês, no dia 22, realizei a
primeira missão em Angola, acompanhada pela, também alferes, Maria Ivone.
Tratava-se de testar a nossa adaptação operacional e avaliar a aceitação de
mulheres no meio militar. Foram duas semanas muito intensas, em que
participámos na operação aerotransportada de militares na Serra de Canda.
Voltei a Angola, em outubro, com a Zulmira (que veio a ser madrinha da minha
filha) e a Nazaré. Acompanhou-nos na viagem a Imagem Peregrina de Nossa Senhora
de Fátima, a quem elevei as minhas preces para a vida que estava a iniciar.
Para trás ficara uma vida estável, tranquila, o ambiente de claustro das
enfermarias hospitalares. A nossa prestação foi-se ajustando às necessidades;
assistimos militares, civis e até o inimigo. O conflito intensificou-se,
alastrou a outras frentes, houve necessidade de abrir mais cursos, nunca fomos
suficientes. Além de Angola, estive em Carachi, Guiné e Moçambique, tendo como
principais missões a evacuação de feridos dos cenários de guerrilha e o
acompanhamento e tratamento de doentes a bordo dos aviões até aos hospitais de
Lisboa. Foi-nos exigida grande capacidade de adaptação, não só pela ausência de
planeamento logístico para militares mulheres, como pelo próprio clima e
população que diferiam entre territórios. Valeu-nos a amizade de colegas e
civis que nos acolheram e apoiaram.
Prestes a completar dez anos em comissão
contínua de serviço, já tenente, passei voluntariamente à disponibilidade a 15
de dezembro de 1970. Em 25 de janeiro, comecei a trabalhar em Setúbal, nos
Serviços Médicosociais, com horários mais compatíveis com a futura condição de
casada do que os Serviços Hospitalares, que preferia. Casei a 18 de abril e
passei a morar no Bairro Santos Nicolau, onde foi inaugurado, em agosto do ano
seguinte, o Posto Médico n.º 22, que integrei como Enfermeira-Chefe.
Em 1974, dá-se o 25 de Abril (a minha
filha Ana tinha dois anos e o meu filho João estava a dois meses de nascer),
que trouxe a esperança de liberdade e a possibilidade de cessarem as
hostilidades no Ultramar. Passei por maus momentos quando me recusei a aderir à
(primeira) greve dos enfermeiros. Apelidada de reacionária e fascista,
sindicalistas e colegas quiseram o meu despedimento. Insultada, quase agredida,
valeram-me algumas pessoas do bairro, a quem tinha ajudado em situações de
necessidade.
Como a verdade e o reconhecimento vêm
sempre ao de cima, fui depois nomeada para vários cargos no âmbito da criação
do Serviço Nacional de Saúde, que se efetivou em 1979. Desde 1980 até 1 de maio
de 1992, data em que me aposentei, não mais voltei ao exercício profissional
como enfermeira, apenas desempenhei cargos técnicos e diretivos, o último como
Vogal da Administração Regional dos Serviços de Saúde do Distrito de Setúbal.
Descrever em breves linhas os meus anos
de aposentação deve-se à falta de espaço, porque o texto vai longo e não pela
falta de episódios marcantes neste período da minha vida. Tinha 54 anos,
vontade de ser prestável à comunidade e apoiar melhor os meus filhos. Na minha
cidade, envolvi-me em várias Associações, como a Liga dos Amigos do Hospital de
S. Bernardo, Associação de Paraquedistas, Soroptimist Internacional, as duas
últimas como sócia-fundadora. Nestas quase três décadas, foi também necessário
dedicar cuidados de saúde a familiares e amigos, e eu própria tive a minha dose
de maleitas. Foi também tempo de comemorar: as conquistas académicas e
profissionais dos filhos, o nascimento dos netos (Pedro, André, Filipe) e
sobrinhos. Continuo a ser uma mulher elétrica, ocupada com a
família, as muitas Associações, as aulas
de zumba e da Universidade Sénior, informada e atenta ao mundo, cabendo-me
ocasionalmente, por ter sido a primeira enfermeira paraquedista, a tarefa
honrosa de narrar como foi, para um grupo de 47 jovens mulheres, realizar uma
missão de “Paz em Tempo de Guerra”.
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