sexta-feira, 6 de março de 2009

VOO 837 A ENFERMEIRA QUE VINHA DO CÉU.



Manuel Bastos
Fur.Mil.Op.Especiais (DFA) Mueda
Coimbra


Caro amigo Barata
Mando-te um pequeno texto que escrevi assim de improviso para responder ao teu pedido, mal li o teu e-mail.
São sempre poucas as palavras quando os sentimentos são grandes, e são sempre insuficientes o reconhecimento e a gratidão de quem recebeu a dádiva generosa destas mulheres.
Da tua e nossa FAP jamais esquecerei o ronronar dos T6 e o silvo dos Fiat nos momentos de aperto, nas matas e nas picadas do Planalto dos Macondes ou do Vale de Miteda.
Posso dizer, como homem que nunca foi tocado pela fé, que a única protecção que recebi dos céus foi a das FAP.
Mando duas fotos em que se vê a enfermeira de que falo no texto.
Como já foram publicadas, fica ao teu critério arranjares outra ilustração, se o entenderes.
Um grande abraço,
Manuel Bastos


VB:Obrigado Manuel,mais uma vez me deixas rendido à emoção das sentidas palavras.





A Enfermeira que Vinha do Céu

Ela vinha do céu. Há poucas coisas mais delicadas do que um helicóptero a poisar no meio da guerra para de dentro dele sair aquela figura feminina, normalmente de t-shirt branca. Vinha e levava com ela os nossos camaradas feridos, e durante uns breves minutos o terror dava lugar a uma leve sensação de doçura.
Às vezes a meio do meu dia o som cacofónico de um helicóptero em direcção aos HUC devolve-me a mata de Moçambique e sinto um alívio antigo, tão antigo como as minhas memórias da Guerra Colonial. O alívio de ver salvo aquele camarada à beira da morte. Não amigo, não irmão; mais do que isso: aquele sócio da vida e da morte, aquele companheiro do peito, aquele parceiro de sangue, que nos olha incrédulo por ver a vida a escoar-se lentamente perante a nossa impotência.
E ela chegava do céu. Chegava a tempo, antecipando-se à morte. E era então que me apetecia chorar; que um homem até aguenta o medo e o terror mas não resiste à generosidade de uma mulher.
Há muitas maneiras de amarmos uma mulher, e eu acho que a vida já me concedeu o privilégio de as conhecer a todas. Mas um homem que não tenha conhecido um momento de extremo perigo, o abismo profundo da sensação da morte eminente, para ser resgatado no último instante pelo sorriso de uma mulher; não sabe que o amor pode tocar o limite do etéreo.
Quando folheio as páginas da nossa história recente e vejo como os governantes deste país desprezam os soldados quando já não precisam deles – os prisioneiros abandonados de La Lys e da Índia portuguesa, e os soldados sepultados e esquecidos nas matas das ex-colónias, para não falar dos que regressaram vivos tendo deixado para trás a vontade de viver – resta-me o conforto de ter conhecido no momento mais dramático da guerra o sorriso redentor desta enfermeira pára-quedista. Sim, um dia no pó de uma picada do norte de Moçambique eram os meus olhos que procuravam desmentir a impotência dos meus camaradas, enquanto sentia a vida a escoar-se lentamente. E depois, ao longe, o som cacofónico do helicóptero como um clarim do céu.



Estas fotos reportam-se ao tempo em que o Manuel,ferido pelo rebentamento de uma mina,era evacuado para o hospital em Mueda

Delicadamente, como julgo que farão os anjos, o helicóptero pousou à minha frente e deixou sair de dentro de si a figura feminina da enfermeira. E a Morte, mais uma vez ultrapassada, deixou-me vivo nas suas mãos.
Será que esta pátria, sempre tão ingrata para os que obriga a combater, trata ao menos com dignidade e honra estas mulheres que voluntariamente arriscavam a vida para salvar as dos outros?
Por favor, não me digam que não, para que ainda possa guardar dentro de mim uma réstia de patriotismo.

Manuel Bastos
Comentário do nosso Co-Piloto,João Carlos,"largado"neste excelente texto:

Companheiros, publicamos este belo texto do Manuel Bastos (1) de homenagem às Ilustres Enfermeiras Pára-quedistas.
Com os seus dotes de escritor e tendo como base de partida o trágico momento em que pela última vez apoiou os dois pés no chão (2), o Manuel Bastos exprime de forma magnífica todo o seu sentimento e gratidão pela acção de quem arriscava a vida “Para Que Outros Vivam”.
A Enfermeira que Vinha do Céu ou afinal um homem também chora, as emoções à flor da pele.
O reconhecimento e a gratidão entre camaradas, mas a exigência de um tratamento digno e de honra por parte dos nossos governantes.
Manuel Bastos, em nome da Linha da Frente, obrigado por nos enriqueceres com esta bela mensagem.

(1) O Manuel Bastos é o autor do livro “Cacimbados – a vida por um fio” e tem alguns textos publicados no “nosso” blogue”, testemunhando momentos duros da Guerra Colonial.

(2) A expressão muito forte “foi aqui que apoiei os dois pés no chão pela última vez na vida” foi utilizada pelo Manuel Bastos na legendagem de uma fotografia enviada para o “nosso”
blogue.