quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Voo 1959 UM MECÂNICO DE HELICOPTEROS NA GUINÉ.



Manuel Lanceiro
Esp.MMA "Canibais"
Lisboa



Esquadra 122 (Canibais)

A “minha” linha da frente dos AL III
Começo por esclarecer que não pretendo, nem é minha intenção, provocar qualquer polémica.
Lembro também que já lá vão 38 anos, que não tenho nenhum registo escrito e que a minha memória já prega grandes partidas.
Cheguei à BA12 em 14 de Outubro de 1972, na
altura o comandante da esquadra 122 (AL III) era o Capitão Pilav Branco e a linha da frente funcionava por escalas. Havia várias, a saber: destacamento para Nova Lamego (semanal); apoio ao Cantanhez com base em Cufar (diário); 2 mecânicos de alerta (diário), havia ainda a escala das operações, etc.. Para além disso cada mecânico tinha um aparelho distribuído, que prestava assistência a nível de linha da frente. Devo dizer, estas escalas pouco funcionavam, pois havia sempre voluntários, fosse qual fosse a missão. Vivi este sistema pouco tempo, porque entretanto, o Cap. Branco terminou a sua comissão.
Em sua substituição, veio o Cap. Pilav. Afonso Costa, que mudou radicalmente este sistema. Como éramos cerca de 18 mais três furriéis
milicianos, ele dividiu-nos em duas equipas, que alternavam os alertas, das 13H00 às 13H00 do dia seguinte (à semelhança de outras linhas).

Legenda:Linha da Frente dos AL III,na BA 12,Bissalanca.
Foto:Manuel Lanceiro(direitos reservados)

Cada equipa era constituído por 10 elementos, sendo um furriel miliciano chefe de grupo, que se revezavam entre si, a saber: Ferreira; Correia e Gomes.
Lembro, que as equipas nunca funcionavam com estes números, pois havia sempre um ou dois de férias, outro a terminar a comissão, outro em Nova Lamego e de vez em quando, outro na enfermaria com paludismo.
As equipas eram muito heterogéneas e como na F.A. as rendições eram individuais, existiam sempre: velhinhos (já a terminar a comissão), veteranos e periquitos. Funcionávamos como se fosse uma família. Os velhinhos, sempre que possível, eram poupados, cabiam-lhes a integração e o apoio aos periquitos, os veteranos tinham que garantir o bom desempenho da linha, mas na hora da verdade todos alinhavam, salvo raras excepções, ninguém se baldava a uma missão.
Como entrávamos às 13H00, rendíamos os que estavam em serviço na Base, pois, os que tinham descolado durante a manhã, quer para evacuações, quer para operações ou para outro serviço, só entravam em folga quando terminassem a missão. Ao fim do dia, os elementos disponíveis, faziam as inspecções diárias e as reparações que competiam à linha.
Não me recordo quantos aparelhos havia na esquadra, mas raramente estavam todos operacionais (havia sempre aparelhos em revisão, em manutenção ou em reparação), mas em véspera de operações ou se eram necessários mais, então, tínhamos uma longa noite de trabalho, porque ao nascer do sol, tinha de estar tudo operacional (máquinas e pessoal). O dia de trabalho, com bocadinho de sorte, acabava às 13H00.
Pronto, em traços gerais, era mais ou menos assim a organização e a vida da nossa linha.
Até aqui, isto foi fácil de escrever, agora falar das pessoas que por lá passaram, o que fizeram, o que aprenderam, o que foi exigido a jovens, alguns chegaram lá com 18 anos, o esforço emocional que foram sujeitos. Isso, meus amigos, não é fácil não.
Fazer evacuações, fossem elas, à zona trazer um ou mais feridos, a aquartelamentos buscar doentes. Fazer abastecimentos (alimentos; medicamentos; correio, etc.) aos locais mais inimagináveis, estou a lembrar-me, por exemplo, da Ponte do Rio Caium (a caminho de Buruntuma), onde nem sequer podíamos aterrar, as coisas eram lançadas para o meio do destacamento (leia-se ponte).

Legenda; Em Cufar,o Granier,Eu e o Chinita
Foto:Manuel Lanceiro(direitos reservados)

Participar em operações, em apoio às nossas tropas que estavam no terreno. Isto são algumas das missões que participávamos, todas elas com um grau de perigosidade muito elevado, basta lembrar que em Novembro e Dezembro de 1972, tivemos dois feridos. O Nuno Almeida (Poeta), ainda hoje sofre de grandes sequelas e o Simão Amaro ferido com estilhaços de uma morteirada, ambos quando faziam evacuações à zona (*)(Naquele dia percebi que tinha que viver depressa, pois um estilhaço qualquer, podia matar a minha sede de viver).
Quero referir ainda, que após a morte da Enf. Celeste (10Fev73) e por ordens superiores, as enfermeiras foram impedidas de fazer evacuações à zona, deixando os mecânicos órfãos. A partir daí, as evacuações faziam-se só piloto e mecânico. O stress que era, levar um ferido a caminho do hospital e pouco lhe poder valer. Lembro-me, duma Enfermeira me ter aconselhado, que nessas situações, era importante por o ferido o mais confortável possível, falar muito com ele, evitando que entrasse e choque, a título de exemplo até me aconselhou, se achasse oportuno, dar-lhe um cigarro e deixá-lo fumar.
Era assim a nossa vida.
Falar também dos atiradores de canhão, que, sendo mecânicos de armamento e terem a sua própria organização, faziam parte da nossa família. Muito se deve a eles, muitas vidas foram poupadas graças às suas intervenções, o alívio que sentíamos ao saber que estavam à nossa vertical, foram uns valentes.
É claro, também contávamos sempre com os pilotos e com as enfermeiras, mas isso são outros departamentos, fica para outra altura.
Como disse atrás, falar daqueles tempos é difícil, mas uma coisa tenho a certeza, é que todos nós, sem excepção, aprendemos os significados das palavras: solidariedade; camaradagem e amizade.
Tenho consciências que tivemos um papel importante naquela guerra. Senti-me muito orgulhoso com a homenagem que a ADFA nos prestou em 19 de Junho passado.
Foi por tudo isto que, quando me apresentei no nosso blog, em 5 de Outubro de 2007 e noutras ocasiões escrevi:

Foram:

22 Meses do melhor da minha mocidade;
Muitos amigos!
Muitos copos!
Muitos bons bocados!
Muitos sustos!
Grande privilégio de fazer parte da família “Zé Especialista”
Muita honra de pertencer à Esquadra122
Um orgulho enorme de ser da linha da frente dos “Canibais”.

Estou certo, que esta minha intervenção, vai entusiasmar muitos companheiros, uns concordando, outros nem por isso, mas vão com certeza participar, contando as suas experiências. Força malta , escrever é uma catarse, afasta alguns fantasmas.

(*) Retirado do poste nº 188, 22 de Abril de 2008, O MEU AMIGO SIMÃO AMARO

Um abraço

Manuel José Lanceiro

Análise do Voo:

Fernando Moutinho:

Li com emoção o texto do nosso companheiro Manuel José Loureiro no Voo 1959.
Excelente descrição que retrata com fidelidade o "espirito do aviador" e a sua consequente grandeza.
Cumprimento com efusão o amigo Loureiro.

Um abraço