sexta-feira, 9 de abril de 2010

VOO 1601 CABANGA.





António Loureiro

Fur.Mil.PA
Figueira da Foz



Dá-me licença senhor Comandante

Ao ler a msg 1598 do nosso camarada Oldívio Sá, o meu meu rebobinador começou de imediato a funcionar.
Como já disse antes, depois de sair da FAP, fui para as Forças Provinciais para Moçambique.
Certo dia em 1973, como a FRELIMO estava a fazer um esforço de consolidação na zona de Vila Gouveia, povoação entre Vila Pery e Tete, para aproveitar o tempo antes do enchimento da bacia de Cabora Bassa, que seria uma uma barreira mais ou menos intransponível, acompanhado da actividade frenética dos comissários políticos na politização das populações, a parte armada ia marcando a sua presença com emboscadas e flagelações às colunas, causando baixas às nossas tropas de quando em vez.
Ao meu grupo, coube a missão de fazer uma acção de nomadização pelas terras do Régulo Sanhantamba.
Como a mata é como uma Catedral, qualquer ruído fora do normal é de imediato reconhecido e, ao ouvirmos os sons de uma batucada, que também era um meio de comunicação, de imediato associamos que havia cabangada (bebida feita da fermentação de milho partido) como o Oldívio referiu.
Os pretos eram uns perdidos por aquilo e como tal, os guerrilheiros da Frelimo não eram excepção e como 2 + 2 = 4, se os houvesse por ali, de certeza que não resistiriam à possibilidade de mandar abaixo umas copanheiras valentes e nós também estávamos a afiar o bico para os surpreender.
Um homem dos meus, que dizia ter deixado de beber, (tudo mentira), também ele próprio começou de imediato a "passar-me a mão pelo pelo", a pedir-me para ser ele a fazer o reconhecimento, que conhecia pessoas dali, etc etc, mas eu sabia que o que ele queria era ir também beber uns copinhos, até parecia que ficavam "cegos" por aquilo.
Passadas 2 horas de marcha, quando estávamos perto, abrimos o dispositivo e lá foi o nosso amigo Abílio Maquissene à civil, fazer o dito reconhecimento.
Como o Abílio não era mais do que os outros e se estava a sentir bem, fez render o seu peixe e nós ali, debaixo de um stress terrível a apanhar seca, mas ele era de confiança, esperto que nem um alho e muito manhoso.
Finalmente lá veio a dizer que estava tudo bem , os guerrilheiros da Frelimo efectivamente já lá tinham estado, mas que se tinham ido embora todos "GROSSOS" há muitas horas.
Recuamos sem dar nas vistas e resolvemos dar uma volta para ver se encontrávamos pegadas mas, passados um bom bocado, ouvimos um tiroteio de criar bicho no local onde pensávamos ser a estrada asfaltada.
Quando chegámos, o cenário não podia ser o pior, o Capitão, Comandante de uma Companhia de Artilharia que estava sediada em Nhassacara, perto do Pandira, (desculpem-me não revelar o nome), estava inanimado mas respirava, estendido na estrada, ao comprido, com a cabeça numa poço de sangue, o 1º Sarg estava (morto), sentado no banco de trás do geep, o condutor do geep, um 1º cabo, negro, um tiro tinha-lhe perfurado o ombro e a bala é que foi atingir o coração do Sargento.
A confusão era generalizada, ninguém se entendia, o mais graduado, um o Furriel (dispenseiro) da companhia e que não tinha jeito nenhum para aquilo, estava abrigado na berma da estrada e nos informou donde tinham partido os tiros.
Deixamos o Socorrista com o Capitão, abrimos em linha, enfiámo-nos mata a dentro, mas dos "turras" nem sinais, a cabanga parece que lhes tinha dado mais força.
Em Moçambique esta bebida é chamada cabanga, meruve é também uma bebida tradicional deles mas feita salvo erro com ananás, essa sabe bem, mas não queiram saber, a mim provocou-me uma diarreia que parece que andava a pintar à pistola com o gicler no máximo, nunca mais bebi tal coisa.
Como tínhamos o caso do Capitão para resolver, regressamos, fizemos o dispositivo de segurança, à espera que uma força do Quartel de Vila Gouveia viesse para substituir os pneus furados das viaturas e transportassem o pessoal dali para fora.
O que me custou mais foi o facto de o 1º. Sarg., pessoa excepcional, possivelmente nem tinha nada que estar ali, mas aproveitando o facto de ir levantar o dinheiro a Vila Pery, penso que para pagar à Companhia, comprou uns livrinhos próprios para crianças, para enviar pelo aniversário da filha, aqui na metrópole.
Vieram os meios de transporte e socorro e a força regressou.
Eu, pelo sim e pelo não, tirei ao 1º.Sargento, o fio em ouro, um conjunto de canetas Parker, o relógio e a pasta com o dinheiro e o entreguei pessoalmente ao Coronel B.S. representante do CTC (Comando Territorial do Centro) que nos esperava em Vila Gouveia.
Como o estado do Capitão inspirava cuidados e os meios eram poucos, resolveram evacuá-lo para o Hospital de Tete, mas como entretanto anoiteceu, não sei porquê, a FAP não podia fazer a evacuação.
Eu nem queria acreditar, mas os civis diziam à "boca cheia" que a aviação fechava a guerra às 16H30. Os nossos camaradas do AB7 é que podem dizer qualquer coisa sobre isso, mas custa-me a acreditar que fosse assim.
A verdade é que, quem lá foi fazer a evacuação dos militares foi o Guerra, dos táxis aéreos da Beira, com a ajuda de viaturas com as luzes acesas dispostas ao longo da pista em terra batida, fazer a evacuação dos militares (é claro que para mim foi um choque, nunca me tinha passado pela cabeça semelhante coisa, serem os civis a evacuarem os militares).
Tudo isto por causa da tal bebida que nós achamos intragável mas que eles adoravam.
Os copinhos deles eram feitos das ex-latas do óleo e levavam 1 litro.
Não pensem mais nisto.
Tchau e 1 abraço.

Voos de Ligação:
Voo 1598 A Saga - Olvídio Sá